Dia 12 de junho de 2016. Pelo menos 50 pessoas morreram e outras 53 ficaram feridas após um ataque promovido por um americano descendente de afegãos. O alvo: uma boate gay de Orlando (Flórida, EUA). “É o segundo maior atentado terrorista após o 11 de Setembro”, publicaram meios de comunicação dos Estados Unidos. Até onde foi possível apurar, Omar Saddiqui Mateen agiu individualmente, sem qualquer participação ou articulação de grupos terroristas internacionais, como o Estado Islâmico. É o conhecido “lobo solitário”. Maior surpresa tiveram as autoridades ao descobrir que Omar adquiriu o rifle e a pistola legalmente, em uma das várias lojas especializadas em armamentos existentes no país. O fácil acesso a armamentos reacendeu o debate no congresso americano, com democratas e republicanos em lados opostos.
Curta a nossa página no Facebook
Há motivo para se preocupar: são mais de 300 milhões de armas disponíveis legalmente em lojas e feiras especializadas. A legislação americana permite que qualquer cidadão – desde que dentro das condições impostas – tenham acesso a qualquer tipo de armamento, desde o de pequeno até o de grosso calibre. Há milhares de estandes de tiros pelo país, e que recebem não apenas adultos interessados em aprimorar sua pontaria, como também crianças em fase de aprendizado. Em agosto de 2014, uma menina de 9 anos de idade matou um instrutor de tiro acidentalmente ao fazer o manuseio de uma submetralhadora Uzi, em um estande de tiros. De acordo o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e do Conselho de Relações Exteriores, entre os anos de 2001 e 2011 pelo menos 130.347 pessoas morreram vítimas de armas de fogo. Segundo reportagem publicada à época pela BBC, o número de pessoas mortas entre 2001 e 2011 é “40 vezes maior do que as mortes em ataques terroristas”, em uma clara contradição.
A divulgação do número de mortos ocorreu quase que simultaneamente com um atentado em uma faculdade do Oregon, quando nove pessoas foram mortas e sete ficaram feridas em um massacre promovido pelo americano Chris Harper Marcel, 26 anos. Em pronunciamento à imprensa, o presidente democrata Barack Obama pediu que a população comparasse o número de cidadãos americanos mortos por terrorismo com os mortos pela violência com armas de fogo. Obama também comparou os EUA com países que decidiram endurecer o acesso a armas e que tiveram resultados positivos. “Sabemos que outros países conseguiram elaborar leis que praticamente elimiram massacres […] Então sabemos que há formas de prevenir isso” (BBC). Na contramão ao que vem acontecendo no país, o presidenciável Donald Trump defende que, em alguns casos, professores tenham direito ao porte de armas.
No Brasil, parlamentares da coligação BBB – Bancada da Bíblia, da Bala e do Boi – caminham uniformemente no sentido de aprovar a descontinuidade do Estatuto do Desarmamento. Assinada em 22 de dezembro de 2003 e regulamentada pelo decreto 5123, a Lei 10826 endureceu o já difícil acesso a porte de armas no Brasil. O artigo 35 do Estatuto proibia a comercialização de arma de fogo em todo o território nacional. Desde 2003 milhares de armas foram retiradas de circulação, trazendo enorme prejuízo às empresas produtoras de armamento e munições, como a Taurus e a CBC. Com o objetivo de derrubar o Estatuto, pelo menos 21 parlamentares foram financiados por fabricantes de armas, 10 dos quais fizeram parte da comissão especial criada com o objetivo de discutir o porte de armas. Em outubro passado a comissão conseguiu aprovar algumas mudanças no Estatuto do Desarmamento.
O lobby das fabricantes de armas e munições não tem limites. Nos EUA, republicanos deram aval ao projeto de criação de uma linha de armas especificas para crianças de 6 a 12 anos. Para abocanhar esta faixa do mercado americano, as fabricantes reforçaram as propagandas dirigidas às crianças com a oferta de espingardas modificadas para meninos e pistolas cor-de-rosa para meninas. No Brasil, o lobby caminha no mesmo sentido, e o pior: com o apoio de pastores e parlamentares evangélicos. Desconhece-se o fato de que milhares de vidas foram poupadas com a criação do Estatuto do Desarmamento. Segundo o documento “Mapa da Violência 2016 – Homicícios por armas de fogo no Brasil”, somente entre 2004 e 2014 o Estatuto do Desarmamento evitou 133.987, índice maior que o número de mortes ocorridas quase que no mesmo período nos EUA, que foi de 130.347 mortes.
“Armas matam”, dizem organizações internacionais de direitos humanos. Ao mesmo tempo, especialistas em segurança pública são concordes no sentido de ressaltar que não é correto reagir a assaltos, seja no trânsito ou em residências. Vale lembrar que o “efeito surpresa” parte do assaltante, e não de quem está confortavelmente relaxado em seu veiculo ou descansando durante o sono nortuno. Além do mais, são inúmeros os casos de mortes por armas de fogo decorrente de crimes passionais, brigas no trânsito e acidentes envolvendo o uso de armas por crianças. É claro que em alguns casos o porte de armas é necessário, como por fiscais do trabalho, criminalistas, promotores de justiça, empresas de segurança privada, mas nos demais casos não é recomendável. Desde a invenção da pólvora pelos chineses, a criação de armas de pequeno e grosso calibre, milhões de pessoas foram mortas.
Mais dificíl ainda é conciliar o porte de armas com passagens bíblicas, como pretende Filipe Luiz C. Machado, autor do livro “Armas, Defesa Pessoal e a Bíblia”. É uma contradição brutal com o princípio de que “não matarás” (Êxodo 20.13), e dificilmente Jesus ou qualquer de seus discípulos e apóstolos fariam lobby pelo uso de armas. Seria uma situação inusitada pastores e membros de denominações evangélicas portarem armas em suas residências, ou mesmo em deslocamentos para participarem de cultos. A defesa do porte de armas parte de um pequeno grupo de radicais de direita, indivíduos que recorrem ao senso comum e à ignorância de milhares de brasileiros para fundamentar suas ideias. O Brasil precisa de mais escolas, de mais educação, e não seguir o exemplo ultrapassado dos EUA, que coloca armas nas mãos de crianças e ao mesmo tempo diz combater os extremistas islâmicos.