Apesar de oficialmente “laico” – fato que se deu com a Constituição de 1891 -, o Estado Brasileiro ainda é estruturalmente católico. Por três séculos “religião oficial”, o Catolicismo perdeu parte de sua influência com a Proclamação da República, em 1889; no entanto, passados quase 125 anos mantem sua presença na estrutura do Estado, em algumas repartições públicas, como cemitérios, hospitais, cartórios, câmaras, assembleias legislativas, fóruns. Mesmo símbolo universal do cristianismo, a cruz ainda é um elemento associado à Igreja Católica. Em cemitérios, padres realizam missas, atendem familiares durante velórios, acompanham autoridades. Capelas no alto de cemitérios também marcam a presença da Igreja, de sua influência na estrutura local. Hospitais públicos reservam espaços exclusivos para fieis católicos, com imagens de santos e altar para orações.
Na verdade, a influência do Catolicismo sobre o Estado nunca deixou de existir, não obstante a separação entre a Igreja e o Poder Público, em 1891. Durante o começo do século XX articuladores católicos conduziram uma reaproximação com o Governo. Em 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas à Presidência, uma nova relação foi estabelecida. Quatro anos depois, a terceira Constituição deu ao Catolicismo maior liberdade de circulação pelas repartições públicas, pelo sistema de ensino. Segundo o CPDOC (FGV), durante o período que vai de novembro de 1930 a julho de 1934, o “país viveu sob a égide da Assembleia Nacional Constituinte que foi encarregada de elaborar a nova Constituição brasileira que iria substituir a de 1891 […] Para a Igreja Católica, o momento era de afirmação e de maior intervenção na vida política do país”, aponta o estudo.
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Vieira de Souza, em Círculos Operários e a invenção da Igreja Católica no mundo do trabalho no Brasil: uma discussão historiográfica (UFRJ, 29/4/2007), destaca que “com Getúlio Vargas, a Igreja retomou alguns dos mais importantes espaços perdidos com o advento da República. (…) Neste período, a Igreja, através de suas lideranças, adotou posições que reforçaram a intervenção estatal através de um governo forte apoiado na ação e na formação de um consenso. Até 1943, a relação entre os dois poderes aqui comentados inseriu-se nesta perspectiva. O clero se posicionou como coadjuvante de uma política que buscava a harmonia social; sua ação entre os assalariados urbanos era centrada na questão da regulamentação das relações trabalhistas (…) em uma organização corporativa e das instâncias hierárquicas necessárias a intervenções culturais”.
Terminada a Era Vargas, a Igreja manteve sua influência sobre o Estado, e o teste final se deu em 1964. O crescimento do movimento evangélico brasileiro, o baixo número de seminaristas, associado às mudanças estruturais decorrentes da gestão de JK, levou, nos anos anteriores ao Golpe, o País a uma nova realidade social, dimensional. A credibilidade da Igreja, e mesmo a sua existência estavam em jogo, naquele período. Era preciso encontrar um caminho, uma forma de prevenção contra “ameaças externas”, e as igrejas evangélicas já eram vistas pela recém-formada Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB, 14/10/1952), como uma das “ameaças” à sua hegemonia. Neste sentido, a Igreja apoiou a derrubada do presidente constitucional, João Goulart, ao colocar a “máquina em funcionamento”. O pequeno clero se mostrou resistente, mas não conseguiu superar as autoridades mais influentes, que conduziam os rumos da Igreja.
Algo recorrente na História é o uso de “ameaças”, de “bodes”, de “comedores de criança” com o intuito de se justificar a manutenção de privilégios, do poder econômico. Foi assim durante a Idade Média, quando a Igreja acusou e perseguiu diversos grupos opositores, acusando-os de “adoradores de Baal”, de “pactuarem com o inimigo”. No achamento de Pindorama (Brasil, a partir de 1503), a ideia de “cristianizar” os aborígenes pagãos, de transmitir aspectos “civilizatórios”, norteou os primeiros 322 anos da colonização das terras outrora pertencente aos caiapós, xavantes, tupi-guaranis, yanomames etc. O paganismo dos nativos teria de ser substituído pelo cristianismo dos escravocratas brancos, europeus, e coube à Companhia de Jesus cristianizar os nativos. Na segunda metade do século XX, foi desenvolvida uma campanha contra evangélicos e movimentos de defesa dos pobres, do homem do campo, dos explorados pelo sistema capitalista.
No auge da ditadura militar, investimentos nas Organizações Globo tiveram um duplo propósito: promover interesses nacionais, oligárquicos, e a “defesa (nas palavras de Roberto Marinho) do cristianismo”. Redemocratizado, o Brasil passou a ser palco do surgimento e crescimento de inúmeras igrejas evangélicas, das mais variadas denominações, das “três fases do pentecostalismo” (Paul Freston), em uma ameaça à hegemonia da Igreja Católica. Caricaturas em novelas, séries, denúncias em reportagens, traçaram um perfil distorcido do movimento evangélico brasileiro, de um grupo constituído por fanáticos, estelionatários, oportunistas. Somente após a morte do jornalista Roberto Marinho (2003) e a divulgação do Novo Mapa Religioso (que aponta o número de 42,5 milhões de evangélicos) teve início uma abertura à igreja evangélica. Houve um rompimento do monopólio católico nas mídias, nos meios de comunicação. Um crescimento inevitável!
O Acordo Brasil-Vaticano (2009) assegurou ao Catolicismo uma posição privilegiada na estrutura do Estado brasileiro, apesar da crescente influência evangélica. A CNBB não apenas é vista como um órgão representativo da Igreja, mas como uma espécie de “braço consultivo do Governo”, que fala em pé de igualdade com os Três Poderes, que impõe posicionamentos, que interfere em discussões no Legislativo. Houve uma redução da influência, evidentemente, mas estruturalmente a Igreja ainda se mantém no Estado, em suas várias repartições públicas, federativas. Em contrapartida, um número restrito de religiosos, de caráter extremista, passou a adotar medidas ou estratégias outrora utilizadas pelo Catolicismo, com rotulações, influência intelectual, desenvolvimento de “nichos de influência”, de “manobra” com o intuíto de se mesclar ao Estado, à estrutura do Parlamento, em um caminho desvirtuado. Os 514 anos de influência da Igreja Católica sobre o Governo deve servir de exemplo quanto ao perigo de uma religião se apropriar do Poder, do Estado, do meio social.