Por Johnny Bernardo
Há anos pesquiso e escrevo sobre a relação entre estado e religião, sobre a importância da separação entre as duas instituições jurídicas. Sou um ferrenho defensor do Estado laico e da liberdade de expressão religiosa. São dois institutos afirmados e reafirmados em nossa Constituição. Todo o nosso conceito de liberdade tem como base a Revolução Francesa de 1789 – e esta, por sua vez, sendo um desdobramento das contribuições de pensadores iluministas. O conceito de liberdade defendido pelos republicanistas franceses abrange uma série de liberdades, como o direito de ir e vir, de liberdade de expressão, de participação política etc.
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Por liberdade de expressão não entendemos apenas o direito de publicação de artigos, mas também envolve a liberdade de expressão artística e corporal. A roupa é uma espécie de manifestação de expressão, de sentimento, de tendência política e religiosa. A cor vermelha é geralmente associada à esquerda, enquanto a azul à direita. Editar normas administrativas ou decretos proibindo o uso de determinada cor ou tipo de vestimenta é uma intromissão no direito de liberdade de expressão. Daí partir para agressões físicas – sob a justificativa de que o outro é diferente – constitui-se em uma manifestação de radicalidade. É o que está acontecendo em Nice, que recentemente emitiu um decreto proibindo o uso do Burkini.
Primeira de uma série de outras 29 cidades litorâneas do sul da França a proibir o uso do traje islâmico, recentemente Nice foi alvo de uma ação terrorista que resultou na morte de 89 pessoas. Portanto, é natural que cidadãos e autoridades públicas manifestem sentimentos de rancor e preocupação, mas nada justifica que o poder público interfira em liberdades individuais. Apesar de algumas vozes favoráveis à restrição – a exemplo do primeiro-ministro da República Francesa, Manuel Valls e do vice-prefeito de Nice -, inúmeras outras autoridades têm se manifestado contrariamente, assim como cidadãos comuns que se indignaram ao presenciar policiais obrigando uma muçulmana a tirar seu burkini na praia.
Há uma série de justificativas tomadas por autoridades de Nice como pressupostos teóricos e jurídicos para a formulação do decreto que proíbe o uso do burkini, mas nenhuma é mais equivocada e contraditória que a que pressupõe que “o uso do traje islâmico vai contra o princípio de Estado laico francês”. O conceito de Estado laico pressupõe: primeiro, separação entre Estado e religião; segundo, neutralidade em questões religiosas. Assim como a religião não pode interferir no Estado, o inverso também é verdadeiro. O prefeito de Nice não apenas rompeu com o conceito de neutralidade do instituto do Estado laico, como também cometeu um erro ao publicar um decreto que interfere na liberdade individual das muçulmanas.
A posição das autoridades de Nice e das demais cidades que compartilham do entendimento de que o “uso de trajes islâmicos não se coadunam com os costumes franceses” pode abrir um precedente perigoso: de interferência na liberdade individual de outros religiosos. Se tomada ao pé da letra, o decreto poderia, por exemplo, proibir que freiras usem o hábito em locais públicos, ou que senhoras evangélicas circulem pela orla das praias vestidas a caráter, ou ainda interferir na vestimenta de cristãos e judeus ortodoxos. O decreto de Nice é uma aberração, assim como sua reprodução publicada na cidade de Villeuve-Loubet, sendo está última derrubada pela Suprema Corte da França e que serve de base para os demais casos.
Por mais que desaprovemos que determinada religião imponha normas de vestimentas abusivas, não é por meio de decretos que teremos a nossa desaprovação atendida, e sim via sistema judicial. Uma muçulmana não pode, por exemplo, ser obrigada a usar um burkini contra sua vontade e o caminho em casos como este é procurar uma autoridade policial, registrar um boletim de ocorrência e ingressar com uma ação judicial. Ao mesmo tempo em que a constituição francesa defende a liberdade de expressão religiosa, ela descreve situações em que um adepto deve se ver livre da prática de determinadas obrigações, quando contrárias à sua vontade. O mesmo aparece na Constituição brasileira de 1989.
Fala-se em uma espécie de “secularismo extremista”. Nas redes sociais, segundo o jornal BBC Brasil, “popularizou-se a hashtag #WTFFrance (algo como “que porcaria é essa, França?”). Em sua conta no Twitter o diretor de mídia para a Europa, da ONG Human Rights Watchm, questionou: “Pergunta do dia: quantos policiais armados são necessários para forçar uma mulher a se despir em público?”. Sobre a ação de policiais de Nice que obrigaram uma muçulmana a tirar o burkini em uma praia, um repórter do Buzzfeed disse: “”É esse o secularismo? É isso o que significa ser liberal: homens que forçam as mulheres a se despir?”
Outros casos
Os 30 municípios da França não são os primeiros a investir contra os direitos individuais de muçulmanas, e não serão os últimos. O primeiro caso de proibição do uso do véu e das demais vestimentas islâmicas ocorreu em 2010, quando cidades como Tarragona, Barcelona, Manresa e L’Hospitalet e Coin emitiram decretos proibindo o uso de vestimentas islâmicas em espaços públicos. A medida foi derrubada quatro anos depois pela Suprema Corte da Espanha. Notícia recente demonstrou a disponibilidade do partido da primeira-ministra Merkel, de propor a restrição do uso da burca em espaços públicos da Alemanha.