A retirada de vídeos do Youtube: as religiões, os ateus, o ônus da democracia e a verdade dos fatos
Por @RubensTeixeira
Fiquei confuso quando li matéria veiculada na imprensa que afirmava que o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro estaria recomendando ao Google a retirada de vídeos do Youtube que poderiam promover a discriminação e a intolerância a religiões de matizes africanas. Evidentemente que o MP é uma instituição importantíssima para o nosso país e desempenha papel de alta relevância para a nossa sociedade. Para cumprir sua missão, o MP possui independência funcional, mas é completamente sujeito à Constituição como qualquer cidadão, empregado, desempregado, religioso, ateu, culto, indouto etc.
Como o Brasil é um país com muitas religiões, e também de pessoas que afirmam não ter religião, esta medida do MP, se existente, está muitíssimo enviesada e longe do que deve ser o tratamento igualitário a ser dado a qualquer cidadão. Se o MP acha, na esfera de suas competências, prerrogativas e obrigações, que deve se posicionar acerca de vídeos que contenham ataques à religião A, B ou C, este tratamento deve ser dado a todas as religiões, ou convicções, incluindo religiosos, ateus, agnósticos e qualquer outro grupo afim. Acerca disso, não existem apenas 15 vídeos. Há certamente milhares, ou até milhões, que circulam pela internet, em vários idiomas, em que pessoas opinam, provocam, criticam, apontam falhas de religiões, ateísmo, agnosticismo, filosofias etc.
Se opinar contrariamente, em vídeos, mostrar erros ou riscos, ou mesmo danos causados por essas linhas de pensamento humano, ou até fazer ataques a práticas de líderes religiosos, filosóficos de qualquer desses grupos é ilícito e fere a algum dispositivo legal, é fundamental que todos esses vídeos sejam impedidos de circular. Contudo, se isso for verdade, é importante que se estabeleça os limites à liberdade religiosa e à liberdade de opinião.
Neste contexto, é preciso tomar o cuidado de não se privilegiar demais direitos de algum grupo, cerceando os de outros, a fim de eleger-se grupos que se pretendam colocar em camisa de força. Os limites devem ser igualitários para todos os cidadãos. Delimitar um direito não pode ser argumento para se eliminar outro. Caso se queira estabelecer um limite severo em relação ao direito à liberdade religiosa e de opinião, todos os brasileiros, inclusive o MP, devem levar em conta que esses são direitos garantidos na Constituição e, para eliminá-los, seria necessário alterar o texto constitucional.
A competência para essa alteração é do Congresso Nacional. Entretanto, por serem direitos elencados entre “os direitos e garantias individuais”, o legislador os incluiu no rol que se conhece como cláusulas pétreas, no artigo 60, § 4o., IV, da própria Carta Magna. Em virtude disso, somente podem ser alterados por intermédio de convocação de uma nova constituinte e isso só ocorre se houver uma ruptura de regime no país, o que acreditamos e esperamos que não ocorra. Com todos os defeitos e fragilidades, preferimos a democracia com suas liberdades e imperfeições, inclusive as provocações religiosas que sofremos ou estamos sujeitos a sofrer.
Já vi várias pessoas, que procuraram a igreja, sendo tomadas por espíritos malignos e que, quando expulsos no nome de Jesus, iam embora. Agora fica a questão, isso não pode ser dito? Deve-se deixar a pessoa em tamanho sofrimento? Seria a sujeição de um cidadão, contra a vontade dele, “à escravidão espiritual” em nome da “liberdade religiosa”? Impossível omitir-se em uma situação dessas. Observe que, nessa hora tão terrível, pouco importa a religião da pessoa. Note que nenhuma foi citada ou favorecida. Depois de livre da opressão, a pessoa não teria liberdade de contar o que aconteceu com ela antes e depois? Por que a censura da verdade e do sentimento sobre o que diz respeito a algo tão íntimo do ser humano? O Estado é sócio de alguma religião ou espírito?
Se as pessoas desejam expor suas experiências de como superaram sofrimentos através da ida à qualquer templo, ou da sua fé, por que não podem? E se quiserem falar que entraram em um templo e foram enganadas ou mesmo prejudicadas de alguma forma, não podem? A liberdade religiosa será usada para tirar a liberdade das pessoas de denunciar mazelas de qualquer que seja a religião? Pela liberdade religiosa, pode-se justificar o incentivo às pessoas a desejarem a morte das outras, ou mesmo quererem algo ou alguém que seja de outra pessoa como, por exemplo, o marido, a mulher, o(a) noivo(a), o(a) namorado(a), ou até a posição da outra? Esse comportamento religioso é ético, moral, aceitável e apreciável perante a sociedade de um modo geral? Ou será que nem sobre isso se pode opinar?
Se alguma religião incentivar uma prática reprovável, qualquer cidadão tem o direito de opinar contra e isso é um direito alienável. O Estado não pode blindar uma religião e nem ficar sensibilizado com estatísticas religiosas porque, senão, estará interferindo na liberdade religiosa. As pessoas escolhem suas religiões e lá permanecem se quiserem.
Há inúmeros vídeos que criticam pastores. Alguns, de pastores criticando pastores. Outros, de pessoas da sociedade, de outras religiões ou de ateus criticando religiosos e de religiosos criticando ateus. Um vídeo não é capaz de converter uma pessoa se o que estiver lá não atender aos interesses dela. As pessoas sabem o que querem e o Estado não pode impor a elas algo quando se tem liberdade de escolher.
Se as instituições republicanas começarem a se envolver nessa questão, poderão ser injustas, enviesadas e até autoritárias. Se nosso país fosse totalitário, conseguiríamos inibir opiniões contrárias a esta ou àquela convicção. Porém, se uma religião faz bem a uma pessoa, ela tem direito de expor sua opinião. Se faz mal, também. Se as religiões se tornarem intocáveis, precisaremos alterar muita coisa em nossa sociedade, a começar pela Constituição. A democracia tem seus ônus e bônus; não há como ter só um ou outro.
Repito, é importantíssimo para o bom funcionamento da democracia que haja o MP e demais instituições republicanas. Evidentemente que a premissa que temos é que a medida proposta foi certamente no esforço de resolver uma questão, mas precisamos, no sentido de cooperar com os ilustres promotores, colocar o outro lado da moeda. Se uma pessoa passar algum constrangimento, sofrer algum prejuízo ou mesmo for prejudicada ou enganada em uma religião ela não poderá vir a público dizer? Se houver acontecimentos criminosos, como violações de cadáveres, que é crime, ou mesmo sacrifício humano em alguma religião e a pessoa discordar, ela não pode ajudar a sociedade informando das práticas criminosas e seus riscos?
Definitivamente, a liberdade religiosa não é salvo-conduto para a prática de crimes e nem de quaisquer atos reprováveis na sociedade. Qualquer ato desagradável que uma pessoa sofra em seu ambiente religioso, em qualquer religião ou convicção filosófica é importante que se traga a público para prevenir outros cidadãos. Se o que for denunciado não for verdade, há instrumentos legais para cobrar do mentiroso que repare os danos, inclusive o direito de resposta. Contudo, seria extremamente pernicioso se consagrarmos um “altar” ao crime, ou a qualquer outra prática ruim, sob a proteção da liberdade religiosa. Pior ainda é se essa liberdade recair apenas sob uma religião em detrimento das outras.
Por último, fica minha contribuição para o MP e demais instituições: (1) não seria melhor apurar primeiro se o que as pessoas falam é verdade ou mentira? (2) se for verdade, não é bom que se divulgue para que a sociedade fique bem informada? (3) se for mentira, não seria melhor que agissem apenas contra os mentirosos? (4) se for para pedir a retirada de alguns vídeos, não é melhor que se peça a exclusão de todos os que atacam religiosos e ateus para que a instituição MP não seja instrumento de proteção de uma religião em detrimento das outras, ou mesmo da falta dela? Claro que, se a opção (4) for adotada, não será factível, até porque os cidadãos não concordarão, pois vão preferir a liberdade religiosa e de opinião, mesmo que sofram o ônus natural da democracia de terem suas convicções religiosas ou opiniões confrontadas.
* @RubensTeixeira é Bacharel em Direito (UFRJ – aprovado para a OAB/RJ), membro dos Juristas de Cristo, doutor em Economia (UFF), mestre em Engenharia Nuclear (IME), pós-graduado em auditoria e perícia contábil (UNESA), engenheiro de fortificação e construção (IME), bacharel em Ciências Militares (AMAN), professor, escritor, radialista, Membro Titular da Academia Evangélica de Letras do Brasil, ocupante da cadeira 37, e da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra e graduado do Haggai Institute Advanced Leadership Training.