A questão “Por que a música gospel é tão ruim?” pode parecer desimportante, mas é fundamental na investigação da espiritualidade superficial dos nossos dias.
Na Grécia Antiga o filósofo Platão (348/347 a.C.) já falava sobre o potencial que a música tem de produzir efeitos duradouros e profundos na alma humana.
Na filosofia clássica a música é vista como o retrato do zeitgeist (“espírito do tempo”), portanto, para entender uma época basta estudar a produção musical do período.
O gênero musical produzido por uma comunidade também pode ser entendido como o reflexo de suas principais características. O que o gospel revela sobre o segmento evangélico moderno?
A música gospel é tão pobre e vulgar, no que diz respeito à organização melódica, quanto qualquer outro gênero musical contemporâneo. O gospel faz parte da indústria pop e sua única diferença é de “conteúdo”.
Crítico implacável da cultura pop, o filósofo britânico Roger Scruton (1947-) lamenta a predominância no Ocidente da música pop: mecânica, afogada em sequências de acordes banais e efeitos de computador, sem qualquer organização melódica. É o tipo de coisa que toca nas rádios evangélicas.
Cultura medíocre
“Adorno lembra que é muito difícil criticar uma linguagem musical sem colocar em julgamento a cultura à qual a linguagem musical pertence. Expressões musicais não vêm em pacotes fechados, sem relação com o resto da vida humana”, escreveu Scruton.
O filosofo britânico afirma que a música espiritual não se vale necessariamente de letras simples e inspiradas (o canto gregoriano é prova disso): seu valor reside, antes, na melodia.
Os primeiros compositores cristãos forjavam suas melodias e letras na tranquilidade do claustro, em silenciosas reflexões sobre a natureza de Deus e sua insondável soberania.
Por seu turno, os compositores gospel são dados à ligeireza, afeitos ao barulho e suas composições são, antes de tudo, registros de suas próprias emoções insignificantes.
Barulho, ligeireza e sentimentalismo: eis o retrato da espiritualidade fast food que invadiu as igrejas.
O hit gospel da rádio só emociona almas superficiais e, nos templos, ele sempre precisa vir acompanhado de ministrações chorosas do “levita” de plantão para causar algum tipo de emoção em um público já amestrado -como os de programas de auditório – que só sabe repetir o refrão enfadonho do momento.
Eu, eu, e eu mesmo
O gospel é superficial e projeta uma espiritualidade superficial. Uma das provas da mediocridade que acomete a música gospel pode ser encontrada na composição:
“Eu, eu, eu, eu quero é Deus!
Eu, eu, eu, eu quero é Deus!
Não importa o que vão pensar de mim,
Eu quero é Deus!”
Podemos observar, no refrão acima, uma pitada de autoelogio e certo narcisismo. A impressão que se passa é que é possível uma espiritualidade solitária e até mesmo hostil à percepção alheia.
Espiritualidade do “eu sozinho” é coisa de budista. Cristianismo é diálogo e comunidade.
Ora, o “eu” que se repete tantas vezes nas canções gospel dos nossos dias inexistia nas composições clássicas dos pioneiros do protestantismo.
Os protestantes históricos eram perseguidos e não viviam tagarelando sobre suas emoções ou desejos – suas composições falavam da dependência de Deus.
Martinho Lutero, que foi um grande compositor, escreveu em “Castelo Forte”:
“A nossa força nada faz;
Estamos, sim, perdidos;
Mas nosso Deus socorro traz
E somos protegidos”
O que mudou? A mentalidade dos homens.
No feudalismo todos viviam presos à ideia de um destino inescapável. Mas as revoluções burguesas no século XVIII transformaram a percepção do homem sobre si mesmo.
O modo de produção capitalista – o mais eficiente de todos – causou efeitos colaterais deletérios na mentalidade humana, fazendo-nos crer que somos donos de nossos próprios destinos e que Deus tem a obrigação de nos conceder a felicidade plena.
Lutero e demais protestantes históricos viveram na época de transição, ainda em um capitalismo incipiente, e certamente aprovariam a negação do fatalismo que animava o feudalismo. Mas jamais aprovariam a ideia de que o homem é tão importante que pode barganhar com o próprio Deus.
Teologia medíocre
A teologia da prosperidade é um dos subprodutos da mentalidade narcisista do homem moderno, crente em si mesmo, autocentrado, e devoto do mais vil pragmatismo. E a música gospel nada mais é do que o equivalente cultural da teologia da prosperidade.
A cultura gospel colocou o “eu” desligado da comunidade como centro da espiritualidade fast food que faz as massas tratarem Deus como um atendente do McDonald’s.
Não é apenas o conteúdo da cultura gospel que está mergulhado em mediocridade. O seu formato é mecânico como tudo no modo de produção industrial. O problema desse tipo de música antimelódica e mecânica – também abordado por Scruton – é sua incapacidade de nos conectar ao sagrado e ao belo.
A “Nona Sinfonia”, de Beethoven, conduzia até mesmo ateus como Nietzsche (1844- 1900) e Schopenhauer (1788- 1860) a experiências espirituais de contemplação da criação.
Não seria justo exigir de ninguém a grandeza de Beethoven. Porém, Scruton lembra que a verdadeira música espiritual – mesmo nos nossos dias – tem certas características essenciais.
A música espiritual nos leva a contemplar a beleza da criação, a majestade do Criador e sentir alegria genuína diante de todos os mistérios divinos presentes no universo.
Os gritinhos de Thalles Roberto não podem fazer isso por você.