Me lembro das minhas primeiras reflexões acerca dos transsexuais. Eu era criança ainda quando pensei pela primeira vez que deveria haver algo na vida deles além dos adjetivos que comumente os acompanhava.
Eram meados dos anos oitenta e eu ouvia de parentes e seus amigos – os adultos – coisas como “são uns safados”, “não têm vergonha na cara”, “imorais”, “marginais”… entre outros ‘deselogios’ da espécie.
Na época, eu conjecturava comigo mesmo coisas triviais como “será que eles tem mãe, pai? Será que tomam remédios, comemoram o natal, comem, bebem?” Acho que ficava intrigado com a maneira de todos ao meu redor enxergar apenas e somente aspectos do ‘gênero’ na vida daquelas pessoas, como se tudo para elas resumisse ao ato e ao fato de se vestirem com roupas comuns ao sexo oposto e de serem – presumidamente – homossexuais.
Essas eram coisas que passavam pela minha cabeça, no auge dos meus nove ou dez anos de idade, quando me lembro de ter refletido sobre esse assunto e confesso que só voltei a pensar nessa temática e nessas pessoas com esse nível de cuidado muitos anos depois, quando a onda GLBT se tornou uma bandeira, tornando-se tema de discussões em nível nacional.
Já se passaram cerca de trinta anos desde minhas primeiras impressões sobre os transsexuais e agora entendo que tudo o que ouvia sobre os transsexuais não passava de preconceito, de discriminação que visava diminuir, desqualificar aquelas pessoas “diferentes”, que, em suma, sempre foram idênticas a todas as outras.
Há um lado interessante que eu não sabia discernir na época, mas hoje entendo que pensar e tentar entender o que se passava com a vida deles significou meus primeiros passos na direção de “me importar com ‘os outros'”. Com o passar do tempo, observo que minhas reflexões e compaixão se dilataram, na medida em que minha consciência humana se expandia. Consciência que, graças a Deus, não ficou resumida ou encarcerada numa redoma convencional, me levando a ver as coisas como são de fato: pessoas assim como eu!
Sim, seres humanos, pelos quais, segundo minha fé cristã, o sangue salvífico do Messias verteu na cruz do monte da caveira.
Ao tomar conhecimento, recentemente, de que 40% dos assassinatos de travestis e transsexuais no mundo ocorrem em solo brasileiro, fiquei alarmado. Nos Estados Unidos, país com 100 milhões a mais de habitantes, foram registrados 16 assassinatos de transexuais em 2013, enquanto no Brasil foram executados 108.
Meu Deus! Esses são dados horrorosos e me ponho a pensar no que poderia fomentar esse tipo de violência. Não sei dar as respostas diretas acerca dessa bizarrice, mas tenho que admitir com honestidade que boa parte desse tipo de reação violenta da sociedade é fruto da irresponsabilidade de psicopatas armados com discursos de santificação, através de argumentos fundamentalistas e literalistas extraídos de sua religião hipócrita, com a qual ‘espancam’,’violentam’ e ‘matam’ transsesuxais sem o menor remorso.
Em nome de quem? De Jesus? Da família? Dos bons costumes?
Me parece incrível ver cristãos, ainda hoje, utilizando o Filho de Deus como argumento para ferir, destruir, matar e roubar.
Pra mim, são uma cambada de vagabundos com bíblias nas mãos e satanás no coração. Não cristãos.
Nossa humanidade hipócrita vem frutificando conforme sua espécie, gerando esses animais escrotos, sociopatas carregados de um zelo religioso bizarro, que parecem ter sido gerados das profundezas da terra, como orcs da religião.
Esse hábito que a igreja adquiriu de se tornar a palmatória do mundo, elegendo cristãos ao posto de juízes morais da sociedade sempre foi uma grande jogada elitista, entendo. Contudo, a irresponsabilidade, fanfarrice e leviandade de seus discursos – no tocante a transsexuais – vem amaldiçoando suas vidas, redundando em vi9olência e crimes reais, embora hoje não sejam capazes de assumir isto.
Cristãos institucionais, políticos atuantes da sociedade deveriam vir a público para promover o amor, o respeito, a coexistência diante de todas as diferenças, pois esta é a marca do Cristo – o Deus encarnado, identificado com os seres humanos de todas as classes.
Já os discursos que promovem ódio, que são instalados em mentes fracas como verdadeiras bombas relógio, podem explodir a qualquer momento, pela má compreensão linguística de muitos analfabetos funcionais psicopatas que se encontram espalhados invisíveis entre nós.
Este texto não é teológico! Não quero defender a atitude de quem quer que seja. Não me importam as atitudes dos outros. Este texto é sobre amor, sobre respeito, sobre a vida.
Este texto é sobre mim e sobre cada cristão diante da responsabilidade de cumprir com as palavras da Carta de Tiago, que diz: “Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado”.
Este é o único bem que eu posso fazer hoje: escrever para meus irmãos cristãos do Brasil e dizer que todos devemos amar nossos semelhantes, mesmo que eles sejam “exteriormente” diferentes de nós, tenham ideias diferentes e até que suas atitudes não sejam compreendidas por nós.
Gostaria que a igreja brasileira vencesse esse vício preconceituoso e que não colaborasse mais com o discurso do ódio e da intolerância, empreendidos por hipócritas oportunistas disfarçados de defensores da família e das pessoas de bem da sociedade.
Se de fato somos filhos de Deus, então, somos capazes de amar, de receber, de acolher e, senão, somos, no mínimo, capazes de não colaborar com essa violência que acontece de forma desastrosa no Brasil, em grande parte, por culpa de nossa “santidade”, que, sabemos, é apenas um disfarce para nosso moralismo hipócrita, mentiroso e impossível.
Por fim, se você tem a liberdade de viver sua fé e dizer que é um cristão, um evangélico, um crente, por que não é capaz de permitir que os outros vivam suas vidas da forma como entendem que devem viver?