Colunas

Visões inconciliáveis

“O homem que diz que a verdade não existe está pedindo para que você não acredite nele. Portanto, não acredite.”
Roger Scruton

Sempre encontro ex-cristãos, pessoas que alegam terem perdido a fé. Às vezes se dizem ateus, agnósticos, ou simplesmente falam que “largaram a Igreja”. Muito raramente encontro entre estes alguém que apostatou por conta de dúvidas de ordem filosófica mais profunda ou por alguma lacuna encontrada na apologética cristã. Na verdade, buscar muita coisa nesta direção é até uma certa ingenuidade, e pode sinalizar que perdeu-se de vista a dimensão existencial e relacional do problema, algo que apologetas autênticos como Alister McGrath tem procurado resgatar.

E então, o que se vê? Bem, o que sempre se pode ver nestes casos são ressentimentos, frustrações, uma imersão gradual no mundanismo vulgar (baladas, bebedeiras, sexo casual ou nem tanto) e a subsequente batalha perdida, no âmbito moral ou emocional, para se recuperar e voltar ao Caminho. De que as igrejas muitas vezes falham, e grotescamente, não há dúvida. O filistinismo, a subserviência intelectual a postulados seculares, e o despreparo técnico e existencial puro e simples são notórios nos púlpitos, nas lideranças e seminários. A falta de sensibilidade aos fenômenos culturais mais óbvios é assombrosa. Mas não há escapatória: a responsabilidade maior é sempre da pessoa. Conheço muita gente que aturou horrores entre irmãos (reais e falsos), mas soube discernir entre a perfeição das verdades do Evangelho e a falibilidade humana dos crentes. De outro lado, temos alguns com uma abertura sincera, ainda que restrita, e também um grande pelotão com frescurites e presunção de uma superioridade moral e intelectual puramente imaginária e auto-lisonjeira. Identificar os dois casos e dar o tratamento adequado é sempre um desafio. Há polaridades e nuances.

E a coisa toda piora quando se trata de ‘kidults’, gente que passou da idade para começar a se comportar e ver a vida como um adulto, e ainda se comporta como adolescente. Aliás, aí está uma tendência comportamental já observada em todo o mundo ocidental que algumas denominações cristãs, na forma com que tratam seus jovens, só fortalece.

A situação destes ex-cristãos merece análise cuidadosa, pois eles sempre estão por perto, ainda mantém laços de relacionamento com os membros de sua ex-igreja – são parentes, amigos, pais, filhos, etc – e com certa frequência estão confrontando, em algum nível, seus antigos irmãos. Nisso, temos um fato engraçado e paradoxal: muitos deles não esqueceram de fato a Igreja, o que levaria-os a desprezá-la, deixando evidente que a fé cristã seria algo realmente “superado” em suas vidas. Pelo contrário, procuram chamar a atenção dos cristãos, alardeando constantemente suas contrariedades à mentalidade cristã. Estão com os corações próximos demais, não conseguem ser indiferentes.

Algo importante a se notar aí é que esta atitude de muitos ex-cristãos evidencia uma verdade preciosa da fé: não há nada que confronte de forma mais radical a cosmovisão secular moderna do que a cosmovisão cristã. E nenhum cristão tem o direito de tentar disfarçar isto em suas abordagens evangelísticas ou apologéticas. Não são poucos aqueles que apresentam um Evangelho que eu consideraria “confortável demais” para mentes imersas nos antivalores seculares. Se é absurda a alegação ateísta de que “a fé é uma muleta existencial para as almas fracas”, isto não quer dizer que certos cristãos não tenham aberto o precedente para essa acusação descabida, justamente por pregarem a tal “graça barata”. É bom lembrar que o cristianismo conforta, mas antes, confronta, promete vida, mas também a cruz; para se ganhar a Cristo, é preciso negar a si mesmo, negar ao mundo, aos desejos carnais, e ao que o diabo (normalmente disfarçado) oferece.

Esse abismo intransponível, essa distância insuperável entre a fé cristã e a mente secular é, e sempre será algo que não se pode perder de vista nem na apologética, e nem nos debates públicos. Pois a cada dia se vê a incapacidade das inúmeras correntes seculares, em diversas áreas, em dar respostas satisfatórias ao anseios humanos. Abandonaram-se a premissas cristãs na construção de conhecimento, e tudo o que se obteve foi o caos conceitual da modernidade. Rejeita-se a fé cristã na esfera pública, e velhas práticas bárbaras, horrendas, sobretudo, como o aborto, o infanticídio e a pedofilia começam a ter vozes que descaradamente as apóiam. Essa confusão também se faz presente em inúmeras almas que, mergulhadas no relativismo, angustiam-se com seu corolário: a perda do sentido da vida, da sua própria identidade e da percepção de seu valor intrínseco como ser humano; a confusão mental que obstruiu a conquista de conhecimento verdadeiro, e que faz com se busque paliativos no hedonismo da cultura pop, na alucinação das teorias pós-modernas, na mistificação new ager e na agitação das ideologias que prometem um paraíso na Terra. Dificilmente um ex-cristão não está preso a estes males. E daí a perturbação existencial indisfarçável.

Diante de um quadro como este, penso que não pode haver atualmente algo mais inteligente, oportuno e mesmo amoroso, da parte de um cristão, do que enfatizar este contraste da sua fé com tudo isso. Ainda mais no que diz respeito à possibilidade de conhecimento da Verdade, e a relevância disto para cada área da vida. Pois perdeu-se o sentido de verdade objetiva, principalmente quando se fala em vida espiritual. E este é o dever do cristão: anunciar a obra redentora do Senhor Jesus Cristo e viver os princípios da fé de forma clara, firme e profunda. Abertos ao diálogo, mas sem fazer concessões, sensíveis ao sofrimento de quem vive na mentira, mas implacáveis no combate às farsas da nossa época.

 

(Imagem: ‘O Retorno do Filho Pródigo’, Rembrandt, óleo sobre tela, 1668.)

Sair da versão mobile