Colunas

Um totalitarismo hi-tech?

O filósofo francês Louis Lavelle, comentando as descobertas científicas de Max Plank, Werner Heisenberg, Einstein, Louis de Broglie e outros, em meados da década de 30 na revista Le Temps, observava que com os avanços na pesquisa sub-atômica, a nova física que surgia apontava para fenômenos completamente distintos do que até então se conhecia, o que causou muitas surpresas. Lavelle percebia que, mesmo diante de novidades  desconcertantes,  “a ciência provoca no espírito uma espécie de embriaguez”,  parecendo colocar nas mãos do homem parte do poder criador, por ser “uma  arma prodigiosa, cujo valor depende do uso que se fizer dela”. Por este motivo, Lavelle constatava que, por outro lado, tudo isso produzia “certo calafrio mesmo naqueles que mais a admiram e amam”.

Lavelle apontou para questões relativas à imagem que a ciência fazia de si mesma, do próprio mundo material que é seu objeto de investigação, e as implicações de questões como essas para o espírito humano. “A ciência não busca mais nos dar uma imagem das coisas. Ela as transforma e multiplica”.

Sem fazer vistas grossas aos benefícios advindos do avanço ciêntífico, mas não menos atento às implicações deste fênomeno sobre a alma humana, as relações entre os homens e o futuro da civilização, C. S. Lewis, em ‘A Abolição do Homem’ fez uma crítica ao deslumbramento e ao utopismo em relação ao tema. Ficava claro para Lewis, que o tão alardeado “domínio do homem sobre a natureza” era muito mais o domínio de alguns poucos homens sobre grandes massas de seres humanos. Entre os exemplos utilizados pelo célebre crítico literário, escritor  e apologeta cristão, estavam o uso do rádio e do avião. Nos dois casos, se faz do ser humano “tanto o paciente ou o objeto como o possuidor de tal poder, uma vez que ele é o alvo tanto das bombas quanto da propaganda”. Lewis também tratou neste mesmo sentido dos contraceptivos: “existe paradoxalmente um sentido negativo no qual todas as possíveis gerações futuras são os pacientes ou objetos de um poder exercido por aqueles que já vivem”, declarou Lewis, atento às dimensões histórica e civilizacional do problema.

É ponto pacífico para qualquer pessoa minimamente sensata que faz  alguns séculos que uma supervalorização da ciência empírica na busca de respostas para questões que são sobretudo teológicas e filosóficas tem trazido consequências nefastas à humanidade. As ideologias totalitárias genocidas têm todas o cientificismo  no seu cerne. Numa época em que já se tem notícia de pesquisas voltadas para a criação de seres híbridos, meio homens, meio animais, como relatado no ano passado na Inglaterra, e diante de algumas estripulias cometidas por cientistas por meio da fertilização in vitro para atender a “casais” homossexuais que almejam ter filhos, fica evidente aos defensores da fé e dos valores cristãos na esfera pública  que passou da hora de se preparar para um desafio apologético e cultural sem precedentes.

A ética cristã tem respostas. Mas como fazê-las driblarem a maré secularista que conta com apoio midiático massivo e que vê no cristianismo justamente o maior entrave a esse novo e bizarro modelo civilizacional que se pretende implantar?

Para ampliar o desafio surge ainda mais uma corrente imbecilizante. O tal transhumanismo, ideologia nova (tem pouco mais de duas décadas) que advoga nada menos que o advento do ‘pós-humano’ por meio da biotecnologia, afinal, pretensão pouca é bobagem. A relevância do trashumanismo advém mais do prestígio e influência de seus ícones e do fascínio que seu discurso pode ter ante as massas, do que da solidez de suas ideias. Nisso, e em tudo mais, o transhumanismo reproduz o que as velhas ideologias têm de pior: uma “nova” ética, uma visão idealista do futuro e a afirmação da posse de soluções para a humanidade. E, sim, eles também acreditam no remodelamento da alma humana.

O otimismo de seus ideólogos quando comparado com as análises de Lavelle, C. S. Lewis e outras grandes mentes, chega ao limite do caricato. Para Ray Kurzweill, empresário, cientista e consultor de figuras como os globalistas Bill Clinton e Bill Gates, num futuro próximo, com os avanços exponenciais da ciência,  até 2036 a vida humana poderá se estender de maneira quase ilimitada. Para viver até lá, é claro que ele faz sua parte: toma 150 comprimidos por dia e segue dieta rigorosa. Grande exemplo de homem do futuro. Perguntado sobre os riscos da produção de computadores por outros computadores, ele declarou à revista Istoé que “esse medo não faz sentido”, que os computadores já estão inseridos de tal modo em nossas vidas e atividades que “o futuro das tecnologias é o nosso futuro”  e que as máquinas “já são partes de nós”. Lembrando das lições de C. S. Lewis, cabe lembrar a velha pergunta do índio Tonto: “nós quem, cara pálida?”

Embora aleguem repudiar a eugenia nos velhos moldes progressistas, seja dos socialistas fabianos, da suprema papisa do aborto, Margaret Sanger, ou dos nazistas, as associações e comparações são inevitáveis, afinal, fala-se demais em aprimoramento da vida humana pela via da manipulação genética. Gregory Stock fala de mudanças para muito além da saúde. Fala de alterações nas características físicas e genéticas dos seres humanos a tal ponto que a reprodução normal acabará por se tornar inviável. Bem, há quem chame isso de evolução. Outro bioeticista da patota transhumanista, Gregory Pence, entusiasta da clonagem humanam, defende abertamente o enfraquecimento das fronteiras éticas entre homens e animais, para que pesquisas avancem e que coisas “razoáveis” que já são feitas a animais possam ser aplicadas a seres humanos.

Enquanto vemos essa conversinha aí, as pesquisas avançam na nanotecnologia, nos estudos de inteligência artificial, na interação entre cérebro e computador, nos implantes de micromecânica, na tecnologia da informação, para não falar do imenso arsenal de recursos para o domínio psíquico do ser humano, seja no nível individual, ou em escala social. Com resultados concretos e visíveis. O deslumbramento todo não se dá de forma inexplicável.

As perguntas que ficam se dirigem aos que têm uma visão mais clara e realista da natureza humana, do uso que se fez da ciência, da glamurização da ciência e das máquinas, sobretudo para a opressão de seres humanos por parte de outros seres humanos: o que fazer? Como lidar com mais este desafio? Se podemos, como evitar a chegada de um totalitarismo hi-tech?

 

Sair da versão mobile