Como fogos de artifício que explodiam em brilho, mas logo deixavam tudo em trevas e caíam no absoluto esquecimento. Assim se pronunciou o maior filósofo que o Brasil já teve, Mário Ferreira dos Santos, sobre as inúmeras correntes filosóficas que surgiram desde o fim do século XIX até os anos 60. E ele se referia especialmente ao existencialismo, uma linhagem bem heterogênea e com a qual se associam nomes como Kierkegaard (seu “patrono”), Heidegger, Martin Buber, Gabriel Marcel e o escritor Jean-Paul Sartre.
A influência do existencialismo, contudo, ficou, e vale a pena examinar uma amostra do que ela trouxe, até porque perto de sandices como o desconstrucionismo, o neopragmatismo e a sanha destruidora e anticristã da Escola de Frankfurt, há muito no existencialismo que pode contribuir na análise de questões pertinentes ainda hoje, por conta não só de suas qualidades e ênfases, como também de suas próprias limitações.
Em 1964, a Rádio Baviera, na Alemanha, chamou um dos melhores filósofos desta linha, Karl Jaspers, para apresentar uma série de conferências. “Que audácia por parte da rádio e que desafio para o conferencista! Não hesitei. A filosofia se destina ao homem e a todos diz respeito. Como título, propus ‘Introdução ao Pensamento Filosófico’”, conta Jaspers, no prefácio da pequena obra (publicada no Brasil pela editora Cultrix), fruto desta série de pronunciamentos, mas que é do período de sua maturidade filosófica. Logo em seguida, vem uma advertência preciosa:
Temos neste opúsculo de Jaspers reflexões sobre a posição do homem no universo, na história, sobre o progresso tecnológico assombroso do século XX e suas implicações sociais e culturais, bons insights sobre o debate político, a opinião pública, e outros temas. O autor avisa: “O simples saber é uma acumulação, a filosofia é uma unidade. O saber é racional e igualmente acessível a qualquer inteligência. A filosofia é o modo do pensamento que termina por constituir a essência mesma de um ser humano.”
Muitas das posições de Jaspers tornam-se interessantes hoje, quando, em muitos assuntos, cria-se uma polaridade entre as posições cristãs e posições seculares – o que é normal – mas num clima de debate em que a posição cristã é impugnada simplesmente por ser religiosa – e, erroneamente, atribui-se um melhor fundamento para teses secularistas que supostamente teriam legitimidade “científica”, e portanto “neutra”. Karl Theodor Jaspers não era cristão, mas nem por isso deixou de reconhecer o valor e o peso dos postulados cristãos, o que serve de lição para alguns cristãos que se deixam levar pelas modas culturais, pelo socialismo e por um liberalismo teológico que nega descaradamente doutrinas centrais da fé, mas com o qual tanto compactuam alguns vigaristas que se dizem apologetas.
“O problema crucial é o seguinte: a filosofia aspira à verdade total, que o mundo não quer”, diz Jaspers, que denuncia o papel que a psicologia e a sociologia passaram a advogar para si, no século XX, enquanto disciplinas capazes de interpretar a realidade. E trata das perversões presentes em ambas as áreas: “Marx não é sociologia. Freud não é psicologia”, e aí abriram-se duas possibilidades: “obter genuíno conhecimento do homem ou fazer-se filosofia pervertida com pretensões proféticas”. Ele lembra que as duas áreas carecem de fundamentos científicos próprios, e requerem conhecimento de outras áreas. Apesar disso, degeneram-se em ciências totalitárias, reduzem a fé a meros fenômenos psicológicos e dão a si mesmas um caráter salvífico: o marxismo pela via econômica e a psicanálise na esfera psicoterapêutica. Alguns de seus debates, apresentados na obra de forma abreviada, mostram os sofismas e a pretensão absurda de defensores das duas linhas.
“As duas podem combinar-se” alertava Jaspers, também médico, professor de psicologia na Universidade de Heidelberg e autor do importante ‘Psicapatologia Geral’. E hoje, sob o impacto das ações da Escola de Frankfurt, cá estamos. Mas já em 1930, conta o filósofo, um psicanalista renomado lhe disse: “a ação de Hitler é o maior ato psicoterapêutico da história”. Deu no que deu. Fica o aviso, num tempo em que cristãos são caçados por um Conselho Federal de Psicologia (CFP) tomado pelos discípulos dos frankfurtianos e que técnicas de modelagem comportamental são aplicadas constantemente pela mídia de massa e no ensino público.
Fala-se no CFP e lembra-se dos atentados à família que os gayzistas ali reinantes querem fazer valer. Outro parecer de Karl Jaspers tem então sua importância manifesta:
“O casamento é a ordenação das realidades sexuais e eróticas, para criação do universo da família, no qual surgem os filhos, protegidos por esse universo. O casamento reclama permanência. É elemento estrutural da realidade.
(…)
O casamento, bem precioso, é um dos milagres que há na História; é a ordem predominando sobre a realidade bruta, é o reconhecimento de obrigações entre cônjuges e para com os filhos”.
Sobre os Dez Mandamentos, relativizado por secularistas de diversos matizes e por outros que se pensam cristãos, o filósofo, aos ouvintes da Rádio Baviera deu seu parecer:
“Maravilha de simplicidade, clareza e profundidade para todos os tempos, o conteúdos dos Dez Mandamentos é, de uma só vez, revelado e capaz de convencer o homem enquanto homem. Falam à conveniência, através da razão. Levantam-se por sobre a paixão, a violência, o instinto, o capricho. Dando-lhes obediência, o homem concretiza sua liberdade existencial”.
Aí estão as palavras de um agnóstico que levou sua vida intelectual muito a sério, a ponto se tornar um grande filósofo. Fica notória aqui a distância que estamos destes palradores obtusos que não conseguem enxergar no Velho Testamento nada além do que violência e regras autoritárias.
“O amor iluminado pela razão filosófica liga-se a uma confiança – inexplicável, sem objeto, intelectualmente incompreensível – no fundamento último das coisas.” Tal fundamento é o Deus vivo e pessoal das Escrituras, O qual, ao que nos consta, Jaspers, não chegou a conhecer. Sua obra, ao mesmo tempo que afirma a busca pela Verdade, não acredita que sua conquista seja possível. Diante dos milagres da Bíblia, Jaspers nega-os. Pensa que o Deus do Cântico de Débora não é o Deus de Jó, nem Aquele a quem Jesus clamou. Como os velhos liberais teológicos, faz a dissociação do “Jesus Histórico” do “Cristo da Fé”, e portanto, nega a Ressurreição. A conseqüência é conhecida dos cristãos: Jaspers, então, duvida da possibilidade do relacionamento do homem com Deus. “Deus pode desaparecer enquanto Deus imaginável, enquanto fonte de lei, enquanto Deus de misericórdia, enquanto Deus-amor. Tudo isso degrada a divindade. Só o homem é um Tu para o outro”. É de se lamentar a incredulidade de um gênio como Jaspers, mas, perdendo de vista as velhas lições da metafísica, e deixando-se influenciar pesadamente por Kant e pelo liberalismo teológico, não poderíamos ter outro resultado.
Ele cita, num dado momento, Gotthold Ephraim Lessing, autor da “vala” que supostamente existiria entre fatos históricos e as verdades da fé. A vala que Kierkegaard tentaria vencer com seu “salto de fé” subjetivista, sem apoio algum na razão, que traria para dentro do cristianismo o perigoso fideísmo que hoje assola a Igreja em vários de seus segmentos. Do fundo desta vala, que é, sobretudo, uma falácia – pois eventos que são mais do que históricos não podem ser simplesmente menos do que históricos – Jaspers bradou, de forma honrada e lúcida, sobre a verdade e seu valor, mas nunca a encontrou – ao menos até onde sabemos – em todo o seu esplendor, manifesto em Jesus Cristo, o Logos, o fundamento de todas as coisas.
Pesadamente influenciado pelo positivismo e pelo liberalismo teológico que dominaram a Academia nas primeiras décadas do século XX, Karl Jaspers não teve a mesma “sorte” de C. S. Lewis e de tantos outros que, ao se depararem com grandes obras da apologética cristã, que jamais dissociam a fé, a razão, a história e as realidades transcendentes, foram tocados pelo Espírito que traz a convicção “do pecado, da justiça e do juízo”, e que apresenta Seu caráter, atributos e amor de forma clara e direta nas Sagradas Escrituras, e também nas obras da Criação.
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