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A Laicidade do Estado e a presença de Bíblias em escolas públicas e privadas

A propósito da polêmica criada em torno da lei n. 9.734, de 11 de março de 2015, do vereador e bispo da Igreja Universal, Jerônimo Alves (PRB), convém trazermos à discussão a validade constitucional e cristã da medida. Segundo o texto, “os exemplares deverão ficar em local de destaque, sendo disponibilizados na forma impressa, em braile e áudio” (G1). Após veto do prefeito Cesar Souza Jr (PSD), a câmara se mobilizou para derrubar o veto e pretende acionar a justiça. O veto, que teve como justificativa a inconstitucionalidade da lei, foi rebatida por Alves.

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Além do argumento de que o “Estado não é ateu”, outros defensores da presença de Bíblias em escolas recorrem a argumentos como a da identidade cristã brasileira, a partir do entendimento de que o Brasil tem no cristianismo sua base histórico-social. São, de fato, válidos semelhantes argumentos? Recorrer à ideia de que o cristianismo – entendendo-se que é composto por católicos romanos, ortodoxos e evangélicos – tem um papel central na formação do povo brasileiro, é suficiente como base argumentativa? A diversidade religiosa não deve ser levada em consideração?

Alves diz “atender uma demanda da sociedade”. Mas à que demanda se refere? Segundo o Censo 2010 do IBGE, Florianópolis aparece em 26ª no ranking de capitais com maior presença evangélica – são 12,81% da população, ou seja, 50,9 mil fieis. Por outro, o IBGE também aponta como sendo 63,68% o número de católicos, seguido por 7,48% de espíritas – maior número do Brasil. Próximo ao número de evangélicos há os sem religião – são 11,76% de uma população de 461,525 pessoas. Além de evangélicos, católicos e espíritas, Florianópolis também tem a presença de religiões orientais e de origem africana. Dessa forma, há uma grande diversidade religiosa a ser considerada.

Delineada a diversidade confessional florianopolitana, agora convém analisar a validade ou não da presença de Bíblias em escolas públicas e privadas. Além de um livro religioso, a Bíblia também é um livro histórico. Como conteúdo histórico, obviamente a Bíblia deve ser disponibilizada em escolas. No entanto, há dois problemas pontuais na lei n. 9.734. Primeiro, exigir que escolas privadas se enquadrem na lei é um erro e um desmando legislativo. Há escolas confessionais, mas a grande maioria é secular, sem associação religiosa. Segundo, exigir que a Bíblia seja disponibilizada “em local de destaque” pode configurar confusão entre Estado e Religião. Dessa forma, a Bíblia deve constar ao lado de outros livros igualmente históricos e religiosos, sem distinção.

É válida a ideia de que alunos de escolas públicas – e nas privadas depende da direção de cada instituição – tenham acesso a conteúdos diversos. No entanto, é preciso cuidado para que o Estado não subvencione ou priorize um livro em detrimento de outro. Pré-determinar que um exemplar da Bíblia seja disponibilizado em lugar de destaque configura sim intromissão do Estado dado ao fato de que a Bíblia é um livro religioso, automaticamente associado ao cristianismo. A escola receptora deve disponibilizar um espaço específico dentro do conjunto de outros livros para conteúdo histórico-religioso, em que a Bíblia deve aparecer ao lado de outros livros do mesmo gênero.

É imperativo que o movimento evangélico tenha consciência da diversidade religiosa brasileira e da necessidade de preservação da laicidade do Estado, sem a qual podemos retornar à bárbarie ou a algo próximo ao padroado. A Bíblia é um livro central na fé cristã, fundamento doutrinário das igrejas protestantes e pentecostais. No entanto, não se deve confundir Estado e Religião – Estado e Religião são organismos distintos. Para compreender tal distinção é preciso certo distanciamento, olhar além dos limites denominacionais. O Brasil – e Florianópolis é um exemplo – é multirreligioso, o que significa dizer que os limites devem ser preservados, e que as religiões devem coexistir.

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