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Religião, capital e disparidade social

Em que medida a religião influência a sociedade? Igualmente: é possível associar a disparidade social do subcontinente indiano ao tradicionalismo religioso? Há outros exemplos no mundo árabe e africano? E que dizer do Ocidente? O artigo “Religião, capital e disparidade social” surge, obviamente, como uma provocação sociológica por meio do qual buscamos compreender a relação entre a religião – mesclada a um amplo avanço tecnológico, científico – e a disparidade social característica da Índia. De fato, é possível encontrar outros exemplos em que a religião influência de forma negativa a sociedade em países como Japão e Arábia. Há questões antropológicas, culturais, presentes na origem e desenvolvimento destes países que são características inegáveis.

A relação religião-sociedade possui ótimos exemplos de validade cultural, social, educacional, como pontuamos em outras análises, a exemplo da relação entre o desempenho escolar de alunos de três escolas do ABCD  com a prática religiosa. Reafirmamos a análise de que a religião é parte da história da humanidade, presente de forma acentuada a partir do agrupamento humano em torno de rios, lagos e mares, no período anterior a Idade Antiga, e que ao longo da História manifesta-se em diversas culturas, contribuindo com o desenvolvimento das comunidades. Por outro lado, há de se reconhecer que o desvirtuamento religioso também é responsável por imprimir aspectos negativos.

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Compreender a disparidade existente em culturas como a indiana, a japonesa, a boliviana – para citar apenas alguns exemplos – é de vital importância para o entendimento dos encontros entre capital, tradição e seus reflexos sociais. A Índia é de longe um exemplo emblemático pelo o fato de que possui todos os elementos que nos permite traçar um perfil da problemática social, atrelada a alguns aspectos do Hinduísmo. Dos países em desenvolvimento, a Índia é o único em que a disparidade social tem origem religiosa, da imposição das tradições hindus no funcionamento da sociedade – apesar de esforços do governo em coibir o sistema, desde o começo de 1950.

Para simplificar: o sistema de castas da Índia tem como base o entendimento tomado a partir da tradição Hindu de divisão social. No topo da cadeia social indiana encontram-se os brâmanes (sacerdotes e letrados), e na base (quarta casta, pés de Brahma) os sudras (servos, camponeses, artesãos e operários) e, abaixo da quarta casta, estão os intocáveis (párias, sem casta) que vivem à margem da sociedade. Dentre algumas atribuições dos párias há o trabalho de recolhimento de excrementos. “Há 1,3 milhão de pessoas na Índia que são catadores de excrementos”, destaca o jornal Folha de São Paulo na reportagem “trabalho sujo” (A22, mundo, 18/5/2014). Ainda de acordo com a Folha, “neste país que é uma potência e já mandou um foguete para Marte, cerca de 600 milhões de pessoas fazem suas necessidades ao ar livre, no mato” (ibidem). Cabe aos párias, como Sudhira, 60 anos, recolher os excrementos deixados pelas castas superiores, como os brâmanes.

A disparidade entre xátrias, intocáveis e brâmanes está no cerne da religião Hindu. Os párias, ou intocáveis, como os que trabalham no recolhimento de excrementos, a 20 rúpias (US$ 0,30) por excremento recolhido, são impedidos de frequentar templos e terem acesso a outros locais públicos. No Japão há um sistema de castas parecido e que tem como base a tradição religiosa dos ancestrais. De sociedade agrícola, feudal, o Japão transformou-se em uma potência econômica e tecnológica, mas ainda preserva aspectos medievais, da época dos samurais, como a discriminação de uma minoria social conhecida como burakumin. Assim como os párias da Índia, os burakumins executam atividades consideradas impuras, como limpeza de ruas, sepultamento e abatimento de animais para alimentação. Discriminados, alguns párias aderem à máfia Yakuza, a maior do País.

Apesar de diferenças econômicas e tecnológicas, Índia e Japão possuem algumas semelhanças significativas, como a influência da tradição religiosa em suas sociedades. A mobilidade social, consequência da introdução da sociedade de classes, pela Revolução Francesa (1789), pressupõe a possibilidade de subida ou descida na escala social. Índia e Japão possuem resquícios medievais, característicos do período anterior a 1789, do estamento social, que os colocam em uma situação contraditória, de confronto entre capital e estrutura social arcaica, absolutista, feudal. Há um nítido distanciamento das sociedades democráticas, centradas na liberdade de expressão e mobilidade social – apesar de alguns problemas localizados, pontuais. O estamento impede o progresso social.

Nesta análise ainda podemos incluir uma reflexão sobre a relação entre ultraortodoxos judeus e suas mulheres. A recente visita do papa Francisco a Israel desencadeou uma série de reportagens, análises, da forma como judeus de Beit Shemesh – uma cidade localizada a 30 km a Oeste de Jerusalém – compreendem o papel da mulher em sua sociedade. Abrangendo 40% dos 80 mil habitantes de Beit Shemesh, os haredins – como são conhecidos os ultraortodoxos – impõem uma série de restrições à mulher, como a proibição de que elas circulem pela mesma calçada dos homens, participem de suas cerimônias religiosas etc. Há placas espalhadas por toda a cidade que indicam a calçada certa à que as mulheres têm de utilizar, além de segregações no transporte público. Também são constantes as perseguições à mulher. Há de se destacar que os haredins – e há movimentos semelhantes – é um grupo isolado dentro da democracia e republica de Israel.

Para além do movimento ultraortodoxo judeu, a mulher é alvo de discriminação, subordinação, assédio sexual em inúmeros países onde religião e sociedade mesclam-se de uma forma antidemocrática. No Islamismo é sabida a forma como a mulher é tratada, concebida, particularmente em países como Arábia Saudita, Irã e Paquistão, onde são impostas inúmeras restrições ao sexo feminino. No Norte da Nigéria há restrições ao acesso à educação laica, ocidental. De uma forma geral, mesmo no cristianismo mais conservador a mulher ainda não encontrou espaço, sendo abertamente proibida de participar do corpo eclesiástico, ser vista ainda como “pecadora”, como passível de “subordinação” ao homem. No grupo católico Opus Dei mulheres se revesam na limpeza dos centros da Ordem, sem remuneração e vítimas de segregação – movimentos de ex-membros da Opus denunciam os abusos cometidos dentro dos centros.

De forma ainda mais paradoxal, na parte sul do continente americano há outro exemplo de desvirtuamento religioso. A Bolívia destaca-se no quesito cultura, disparidade social, que nos oferecem um vasto campo de análise. Predominantemente agrícola, de origem indígena, o país é palco de manifestações sociais mescladas à influência da tradição religiosa. Conhecida como Tinku, a “festa” que os bolivianos de Macha participam anualmente é tema de preocupação para o governo e grupos de defesa dos direitos humanos. “No primeiro domingo de maio, membros de cerca de 70 comunidades rurais lotaram as ruas de Macha para render homenagem a Jesus Cristo e a Pachamama (mãe-terra), dançar ao som do charango (instrumento de cordas) e da jula jula (flauta andina). Vão ao local para confraternizar, cortejar, consumir grandes quantidades de chicha caseira (bebida alcoólica feita de milho), batizar os filhos na igreja – e, sobretudo, para tomar parte de sangrentas brigas individuais e coletivas que às vezes acabam em morte”, descreve o jornalista Fabiano Maisonnave (Folha, Ilustríssima, 1/6/2014). A Tinku é praticada pelas comunidades de Macha com o objetivo de alcançar “melhores resultados na colheita” e, para eles, o derramamento de sangue é exigência de Pachamama. “Quando morre gente, é um bom ano, um ano produtivo”, resume um dos praticantes ligado ao Poder Público da cidade da Macha.

Há a possibilidade de se justificar alguns aspectos da cultura boliviana dada as condições sociais relevantes, mas é impossível negar que o país está inserido no contexto contemporâneo, do século XXI, que exigiria, pelo menos em tese, um posicionamento mais brando em questões culturais – e existe um esforço do governo neste sentido. O grande problema – e aí podemos incluir o mundo árabe, a Índia e o Japão – é que resquícios da tradição religiosa feudal acabam por se inserir no dia-a-dia da população, em uma relação difícil de romper mesmo com esforços governamentais. Decorrente do movimento Iluminista da Inglaterra de 1680, pensadores de países como França e Alemanha debruçou-se para desenvolver um entendimento da sociedade de sua época, caracterizada pelo Absolutismo Monárquico, da influência direta do Alto Clero sobre o Terceiro Estado (composto pelas camadas sociais). Havia um claro desmando do Primeiro e Segundo Estado que levou pensadores como Bauer, Feuerbach, Voltaire, Marx, Weber a contestarem a influência do Alto Clero no Estado. Obviamente que é preciso entender o posicionamento dos autores dentro do contexto social da época, mas que não se enquadram mais na sociedade pós-moderna, pelo menos não em parte. A religião é sim importante enquanto fenômeno social, mas precisa estar em sintonia com o modelo democrático contemporâneo, sem imposições à sociedade, às culturas diferenciadas.

A disparidade econômica e social possui paralelos nos países analisados, mas com maior força no subcontinente indiano onde a religião influência de forma mais aberta os rumos do país, da sociedade em desenvolvimento. A eleição do nacionalista hindu, Narenda Modi, exemplifica a capacidade tecnológica, econômica do País. Devido à dimensão territorial e demográfica, a imagem de Nerenda Modi esteve presente em diversas cidades de forma simultânea através da tecnologia ocidental de hologramas. Em fevereiro, o também indiano Satya Nadella ascendeu ao posto de novo presidente-executivo da maior empresa de tecnologia do mundo, a Microsoft, relegando ao fundador da companhia, Bill Gates, à função de conselheiro de tecnologia. Apesar dos claros avanços econômicos, tecnológicos e estratégicos da Índia, o país ainda possui resquícios medievais, contraditórios, como um vasto campo de análise sociológica, antropológica, histórica.

Cabe ainda avaliarmos a disparidade social presente na sociedade contemporânea. Que influência a tradição religiosa arcaica destes países influem na estrutura social? Ao mesmo tempo: de que maneira a religião pode contribuir com o crescimento e melhoria das condições sociais não somente em países desenvolvidos, mas também nos subdesenvolvidos? A discussão da disparidade social ganha forma e peso na atualidade com a obra do economista francês Thomas Piketty, o clássico “Capital no Século 21”. Piketty demonstra em que níveis se encontram a desigualdade social em países como os EUA. Há uma tendência até mesmo no meio empresarial e religioso de que o capitalismo precisa passar por uma reforma que contemple as camadas inferiores da sociedade. Recentemente, em Londres, um seminário reuniu alguns dos principais empresários e políticos para discutir a problemática. No Brasil, a recente matéria de capa da revista Exame traz a discussão. Que a sociedade precisa desenvolver melhores mecanismos de distribuição de renda não há qualquer dúvida ou contestação; no entanto, há de se haver uma mudança na concepção religiosa tradicional, na maneira como países como a Índia e a Arábia Saudita compreendem a sociedade.

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