Há algum tempo pretendo escrever algo sobre a polêmica do projeto de lei de “redução da maioridade penal”. Até então não o fiz por temer comentários de um grupo restrito de conservadores, mas por estar envolvido em outros projetos cotidianos. No entanto, um mês após a aprovação – consequência de uma manobra do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha – conseguimos separar um tempinho para discorrer sobre o assunto. É de conhecimento de quem acompanha nossa coluna e em outros meios de comunicação que somos partidários do segmento evangélico progressista. Não escondemos o fato. Ser progressista não é, ao contrário do que alguns pensam, ser contrário à família. Ser progressista significa olhar a sociedade a partir de sua estrutura e de forma distanciada.
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O distanciamento do objeto de pesquisa ou análise é importante porque permite ao observador desenvolver um entendimento imparcial, de forma a propor melhorias ao funcionamento sadio da sociedade. Em outras palavras: cabe ao observador olhar a sociedade a partir de suas diferenças, do todo que a compõe, de suas múltiplas realidades. Diferente da realidade característica do final do século XIX e o começo do século XX vivemos um período de grande diversidade religiosa e ideológica. O Brasil, por exemplo, é composto por uma miríade de crenças religiosas, de religiões institucionalizadas. Dessa forma, é preciso que os limites denominacionais sejam respeitados. A agressão a jovem Kailane Campos, de 11 anos e adepta do Candomblé, no Rio de Janeiro, é um exemplo de intolerância e de desrespeito para com a diversidade religiosa brasileira.
Portanto, ser progressista significa olhar a sociedade a partir de suas diferenças, de suas diversidades. A polêmica da redução da maioridade penal é outro exemplo de como a sociedade procura intervir em uma estrutura que ela mesma desconhece. Apesar de boa parte dos brasileiros serem favoráveis à redução da maioridade penal não significa, por outro, que ela compreende a complexidade do tema. Trata-se de uma questão pétrea, parte da Constituição de 1988 e que, portanto, não pode ser discutida de um dia para o outro, como foi o caso da aprovação, na Câmara dos Deputados, da redução para crimes hediondos. Isso não significa dizer, no entanto, que um garoto que comete um assassinato deve permanecer impune; a discussão não é essa.
A política de encarceramento já se mostrou impráticavel principalmente pensando em países como EUA, China, Rússia e Brasil que tem, respectivamente, as quatro maiores populações carcerárias do mundo, com pouco mais de 5 milhões de encarcerados – somente no Brasil, segundo dados do Ministério da Justiça, há mais de 607.700 presos, metade dos quais se quer passaram por julgamento. Com a aprovação, no Senado Federal, da redução da maioridade penal, em um ano o sistema penitenciário receberá 32 mil novos presos, de acordo com levantamento feito a pedido do portal G1. É algo impraticável principalmente pensando que há um grande déficit de vagas em presídios e que também acarretará em mais gastos com o custeio por preso. Somente para efeito de comparação, se gasta R$ 7.100,00 com cada jovem internado na Fundação Casa (SP) e apenas R$ 400,00 com cada aluno matrículado nas escolas públicas estaduais. É um grande disparate.
Entende? Estamos diante de uma inversão de valores, algo que não acontece em países como Finlândia, Suécia e Dinamarca que investem pesado na educação como forma de desenvolvimento de uma sociedade sustentável e produtiva. Na Suécia, por exemplo, recentemente foram fechados quatro presídios e um centro de detenção por falta de presos. Motivo: a juventude tem acesso à educação, ao lazer, e, em suma, a uma vida digna que faz com que eles não se envolvam em crimes ou com o tráfico de drogas. Por outro lado, em países como Brasil e Estados Unidos a população (e especialmente a juventude) é constantemente bombardeada pelo capitalismo consumista e destrutivo, sendo uma das consequências à luta de classes, a alienação social, a despreocupação com questões fundamentais, como o acesso à cultura e ao conhecimento. Os políticos têm parte de culpa por não investir adequadamente em políticas públicas de acesso à educação e à cultura.
Estamos longe de termos uma pátria educadora enquanto políticos e outros líderes torcerem pelo “quanto pior, melhor”. A onda conservadora do congresso nacional até o momento tem se mostrado destrutiva, com restrições aos direitos trabalhistas, revisão do conceito de “trabalho escravo” e discussão em torno da redução da maioridade penal. Não há uma real preocupação com os valores realmente fundamentais de nossa sociedade, como em desenvolver políticas de valorização da cultura, de melhores condições financeiras dos pobres que se amontoam em favelas do Rio de Janeiro e São Paulo e que têm tido dificuldade de acesso a uma vida dígna. Especialmente os jovens são vítimas de um sistema desumano, de 515 anos de políticas que faz com que os pobres sejam relegados a indíviduos de segunda categoria, excluídos dos bens produzidos pela pátria.
Que pátria é essa que permite que famílias inteiras existam à beira da sociedade, que tenham de conviver com situações de sobrevivência incompatíveis com o grande avanço tecnológico, de produção e de capital acumulado? São abismos aparentemente intransponíveis. Na verdade, somos parte do problema no sentido em que não contribuímos com a melhoria de nossa sociedade, com a escolha de políticos comprometidos com o desenvolvimento de um país sustentável, com foco na redução da pobreza e com investimento maciço em educação. Pais e mães que são encarcerados por terem cometido pequenos furtos (famélicos) e jovens que são apreendidos por praticar pequenos furtos e roubos são, na verdade, parte deste problema desenvolvido ao longo dos últimos cinco séculos de nossa história. Os meios de comunicação também têm parte de culpa por criar um ambiente de consumismo exacerbado, que causa distorções e aprofundamento da crise social.
O pior de tudo neste contexto é a atuação isolada e destrutiva de certos grupos que pregam o encarceramento indiscrimado, a defesa de práticas de tortura e de torturadores, a violência física e simbólica contra autoridades eleitoralmente constituídas. Estamos diante da mais pura e desumana política de grupos de extrema direita que tem recorrido à tribuna federal com o objetivo de aprofundar a crise brasileira. Não contribuem em nada com a melhoria do funcionamento do Estado, e o deputado Eduardo Cunha é a face dessa política retrógrada e destrutiva que vem se alastrando pelo país. Ele é parte de uma ala evangélica que não representa a totalidade dos evangélicos brasileiros. A defesa da redução penal, do regime militar e da tortura não é parte da ética cristã, de princípios bíblicos que pregam o “amor ao próximo”. Jesus Cristo é o maior exemplo progressista de todos os tempos por perdoar a mulher adúltera e protegê-la do ódio dos fariseus (João 8). É esta que deve ser a posição da Igreja evangélica e não o contrário, como infelizmente verificamos.