Certa vez, conversava com um vendedor no centro de Porto Alegre, daqueles que vendem ‘mandolate’ (torrone), água e refigerante e ficam gritando: “barato refri e água, barato mandolate…”, enfim, fiquei ali jogando conversa fora com ele, enquanto esperava um amigo.
No meio do papo, ele me surpreendeu com uma história incrível, sobre um incêndio que havia assolado sua casa, meses antes. Pai de muitos filhos e avô de trinta netos, ele dizia que o terreno da casa onde vivia era grande e que acabou se tornando uma espécie de condomínio familiar – pra não dizer um cortiço – onde de tempo em tempo, era construído um novo puxadinho, capaz de agregar mais e mais filhos, noras, genros e netos. Tal como um coração de mãe!
Ocorre que eles eram todos muito pobres e suas quatro casas, apoiadas umas nas outras, feitas de uma mistura de madeira e papelão tocadas por uma labareda, por menor que tenha sido foram rapidamente consumidas pelas chamas. Cena que não é incomum nas regiões menos favorecidas, onde nas chamadas favelas o risco de grandes catástrofes é sempre iminente.
Em poucos minutos o incêndio já havia tomado conta das quatro casas e a imensa família desesperada contava e recontava as dezenas de filhos e netos, se dando conta da tragédia: faltava um!
Cristian, na época com apenas um ano e meio de idade e um dos mais novos daquela grande família tinha ficado lá dentro. Na favela não tem hidrante e diante do fogo intenso, bombeiros, apesar de ter chegado rapidamente, não conseguiam entrar na casa. A mãe, do lado de fora gritava desesperada pedindo que alguém salvasse seu filhinho.
Todas as tentativas eram frustradas e nem bombeiros, nem ninguém conseguia sequer chegar perto da casa em chamas.
Foi então que apareceu um cara, cujo nome é Rafael, não eu, outro Rafael. Eu não sou herói, mas aquele Rafael sim, ele é um verdadeiro herói.
No meio de toda aquela loucura, Rafael estava em casa fumando suas pedras de crack e relutava em atender aos apelos da curiosidade mórbida que acomete qualquer pessoa normal – frisemos o normal – quando ouve o barulho de confusão da rua.
Porém, de alguma forma, os gritos de desespero daquela mãe, tocaram em Rafael, impulsionando-o a uma atitude que somente loucos – frisemos loucos – são capazes de tomar.
Drogado e louco, o jovem olha pras pessoas apavoradas ao seu redor, pega um cobertor em casa, o encharca e, sem o menor aviso, entrou no meio do incêndio, casa a dentro, onde viu o pequeno Cristian debaixo de uma mesa na cozinha, com uma pequena varinha nas mãos, lutando contra as chamas. O tomou em seus braços e saiu!
Não foi sequer queimado, nem um fio de cabelo. A criança foi direto pro hospital de queimados, de onde saiu completamente restaurada algumas semanas depois. A Defesa Civil reergueu as casas, os vizinhos cooperaram doando geladeiras usadas, fogões, roupas e, por fim, tudo já havia voltado à normalidade na vida daquele povo já habituado a esse tipo de tragédia.
Contudo, há nessa história elementos de profundo simbolismo me saltando aos olhos:
O herói, o maluco de pedra, o chapado de quem certamente ninguém fazia caso, foi ele o salvador daquela criança de nome Cristian, de óbvio sentido e que representa uma nova geração cristã a qual, como uma criança perdida em meio às chamas, luta sem equipamentos ou condições de vencer seu feroz inimigo.
Rafael, o casqueiro, pedreiro, viciado, maloqueiro, cujo nome significa curado por Deus, ou Deus cura é alguém do qual ninguém faz caso, um marginal que dentro de sua loucura, superou o preparo de bombeiros profissionais e até mesmo o amor de uma mãe, que não foi capaz de sacrificar-se pela criança.
Deve ser de fato o momento de uma geração louca colocar sua loucura em ação, vencer seu medo, seus próprios preconceitos, suas crises pessoais e seus conflitos de auto estima! Precisamos salvar a nova geração da Igreja do meio desse incêndio que acomete a humanidade. É urgente e não podemos esperar que líderes preparados e treinados da atualidade – os profissionais da fé – o façam.
Acabou a paixão, acabou a chama do chamado, só restaram a frieza e a indiferença do coração dos levitas predestinados e assalariados, além das chamas infernais que destroem vidas abandonadas e marginalizadas, pelas quais poucos de nós sente qualquer identificação.
Pra bom entendedor, meia palavra basta e quem tem ouvidos que ouça! Onde estão os filhos e os ministros da reconciliação? Não falo de igrejas com suas estruturas, departamentos e ministérios profissionais, falo dos filhos, dos anjos, dos profetas, dos loucos, dos incompreendidos…
Onde eles estão?