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O sucesso do Estado de bem-estar social

A propósito do artigo “O fracasso do Estado de bem-estar social”, do colunista Thiago Cortês (publicado ontem neste Gnotícias), gostaria de fazer alguns apontamentos necessários à compreensão do fenômeno chamado Welfare State. De início é importante deixar claro a relevância do debate de ideias, de contraposições, de abertura às divergências, cruciais à manutenção do Estado Democrático de Direito. São nítidas nossas diferenças de análise da conjuntura social, do andamento das políticas públicas, como da relação do Estado com movimentos sociais. No mais, gostaria de estender meus cumprimentos ao Thiago Cortês e aos demais colunistas deste portal. Temos posições diferentes em algumas análises, mas temos de preservar a convivência, o diálogo de alto nível.

Antes de tratarmos especificamente do Welfare State (Estado de bem-estar social), convém retrocedermos nossa análise à segunda metade do século XVIII, mais especificamente ao ano de 1760. Neste ano, a Inglaterra passou à dianteira do mundo ao desenvolver o que em História conhecemos por Revolução Industrial. Das pequenas oficinas medievais, de práticas de manufatura e artesanato, o trabalho passou a ser coletivo e hierárquico. Neste período houve um grande êxodo rural e imigratório. Atraídos pelas novas oportunidades de emprego, centenas de camponeses e estrangeiros deixam suas terras e famílias para se aventurar em Londres. Crise urbana.

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Neste contexto, surge o que historiadores e geógrafos chamam de “cidades industriais”. Londres, e depois Paris (1850), veem sua população crescer de forma exponencial. Tinham, em 1880, 4 e 3 milhões de habitantes, respectivamente. Esses grandes aglomerados urbanos, explica o historiador Claudio Vicentino, “originaram os mais variados problemas de urbanização: abastecimento de água, canalização de esgotos, criação e fornecimento de mercadorias, modernização de estradas, fornecimento de iluminação, construção de escolas” (1997:151). Progresso e miséria, desenvolvimento econômico e exploração social caminharam juntos. O mercado de trabalho absorvia todos os braços, incluindo mulheres e crianças, que doavam sua força de trabalho.

A exploração trabalhista, as duras jornadas de trabalho (oscilavam entre 14 e 18 horas), o distanciamento entre o operariado e os donos dos meios de produção, impulsionou o surgimento dos primeiros movimentos contestatórios, caracterizados pelas trade unions (sindicatos) e doutrinas sociais conduzidas por pensadores como Saint-Simon, Louis Blanc, Charles Fourier, Robert Owen, Pierre Proudhon, Friedrich Engels, Mikhail Bakuni, Leon Tolstói. Diversificaram-se as lutas, as ideologias, cada qual com uma forma de atuação, nem sempre correta. No entanto, é preciso compreender o contexto da época: de imobilismo social, de resquícios do feudalismo representado pelo absolutismo monárquico, característicos de países como Inglaterra e França, pré – 1789.

Adaptado do clássico de Émile Zola (1840-1902), o filme Germinal retrata de forma clara e precisa as características trabalhistas do período retratado. O filme é ambientado no norte da França, na cidade de Marchiennese. O jovem Etiénne passa a acompanhar a dura vida de trabalhadores da mina de carvão Voreux, que enfrentam jornadas desgastantes, em situação de vulnerabilidade trabalhista e desmandos de superiores. Com multas injustificadas, redução de salários, abusos diversos, a situação dos trabalhadores de Voreux chegou a tal situação calamitosa que os levou a paralisar as atividades, a protestar por melhores condições de trabalho. O Estado recorreu ao que Max Weber denomina de “domínio legal”. O enredo termina de forma melancólica: com a morte do principal líder dos mineiros. Apesar do desfecho, a situação dos operários franceses levou a outras conquistas, desencadeadas com a Revolução Francesa (1789) e a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sintetizada em três princípios: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

No século XX, uma nova conjuntura internacional ganha forma, com o avanço de potências como Estados Unidos, Inglaterra, França, Holanda, Alemanha, Itália, Império Austro-Húngaro, Japão etc., com desdobramentos inesquecíveis: 10 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e mais de 50 milhões na Segunda Guerra Mundial – e isso sem mencionar o período entre-guerras (1919-1938), quando as máquinas nazista e fascista torturam e assassinaram milhões de judeus, ciganos, negros, homossexuais, cartomantes. O mundo da primeira metade do século XX assistiu à barbárie, ao morticínio e genocídio. Atingida pelas guerras e pela crise desencadeada pela quebra da bolsa de valores de Nova York, de 1929, a Europa buscou um caminho de reestruturação, de organização social que permitisse dar aos seus cidadãos qualidade de vida, culminando no que o economista e sociólogo sueco Gunnar Myrdal idealizou e propôs como Welfare State.

A Grã-Bretanha e o Estado de bem-estar social

Não obstante tentativas anteriores, no século XVIII, por Áustria, Rússia, Prússia e Espanha, foi em 1942, na Grã-Bretanha que o atual modelo cunhado por Myrdal ganhou forma e dimensão. Neste ano, a Inglaterra se destacou do continente ao desenvolver mecanismos de Bem-estar social caracterizados pela educação e saúde universais. O modelo teve um grande impacto entre os cidadãos britânicos, embora tenha sido substituído pelo Neoliberalismo, em uma manobra que reduziu os benefícios alcançados. Adotado pelos países escandinavos e por outros, como Alemanha, França e Holanda o Estado de Bem-estar social ainda é uma realidade nestes países, referência mundial em qualidade de vida, em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), apesar da crise desencadeada a partir da década de 1970. Parte da crise atual se deve não ao modelo social, mas a uma conjuntura decorrente da globalização e do neoliberalismo desenfreado e desumano.

Destaque da Folha de São Paulo, a Suécia é retratada de forma equivocada pelo nobre colunista Thiago Cortês. Primeiro, que não é o Estado sueco o responsável pela mendicância de romenos e outros imigrantes que todos os dias desembarcam em seu território. Mariana Reis, que assina a reportagem, “Afluxo de mendigos muda a paisagem social da Suécia”, demonstra que o que está em jogo na dinâmica social do país escandinavo é o antagonismo de posição política característica do continente Europeu. De um lado, o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido Democrata Cristão (PDC) defendem a presença e o cuidado dos desamparados originários de outros países pertencentes à União Europeia (UE), da qual a Suécia faz parte. Michael Anefur, do PDC é um dos que lidam diretamente com moradores sem teto, sendo coordenador da comissão sobre moradores sem teto. Do outro lado, e de forma isolada (pelo menos oficialmente), o Nacionalista Democrata Suecos (NDS) é a favor da criminalização e deportação dos imigrantes que se encontrem em situação de mendicância na Suécia. Não é o que defende cristãos do PDC e social-democratas:

“Como membros da UE, temos a responsabilidade de garantir que ciganos da Romênia também tenham a possibilidade de se integrar à sociedade. Também já tivemos ciganos suecos em situação vulnerável”, disse Jeans Orback, do partido Social Democrata, em julho, em debate sobre o tema, destaca a repórter da Folha, Marina Reis, de Estocolmo.

A crise pela a qual não somente os países escandinavos, mas toda a Europa e mundo atravessam não implica em dizer que o modelo de Estado de Bem-estar social é um fracasso, como aponta nosso colega de coluna, Thiago Cortês. É obvio que há uma crise econômica, por questões pontuais, como o crescimento populacional, envelhecimento da população, crises econômicas regionais e internacionais que afetam diretamente os programas sociais mantidos por países como Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia e França. Novamente: não se trata de uma crise ou de um suposto fracasso no modelo adotado por estes países, particularmente nos países escandinavos. Não podemos ignorar que as populações destes países convivem com uma ótima malha viária, um sistema de transporte público, de saúde, educação e de saneamento básico de excelência. Organizações internacionais, como a ONU e agências confirmam o sucesso do modelo.

UOL: “Noruega é a primeira colocada no IDH pelo quarto ano seguido”

PORTAL TERRA: “Com 98% dos alunos na escola pública, Finlândia é referência em educação”

PORTAL TERRA: Brasil é 31º em ranking de bem-estar de idosos; Suécia lidera 

EXAME.COM: “O que torna a Dinamarca o país mais feliz do mundo” 

O capitalismo praticado por países contrários ao modelo do Estado de bem-estar social é um exemplo maior de fracasso, de desrespeito para com os cidadãos, embora tenha grande importância do ponto de vista econômico, tecnológico. É um erro associar o Welfare State a uma espécie de assistencialismo, de paternalismo, dado o fato de que lida com direitos, como o de saúde, de educação, de moradia, de segurança. Os neoliberais propõe uma sociedade dos “mais fortes”, dos “mais preparados”, dos “mais capacitados” para ascender na escala social. É o que conhecemos por “Darwinismo social”, uma adaptação do modelo evolucionista de Charles Darwin. Segundo este conceito, na luta pela sobrevivência apenas os mais aptos conseguem evoluir, crescer. E quanto aos de QI inferior, aos desprotegidos das periferias, dos sertões? O neoliberalismo propõe, portanto, um Estado sem saúde e educação pública. Imagine o que seria do Brasil hoje sem o SUS, sem a educação pública e gratuita, sem o Pleno Emprego, sem as Universidades Federais, o Pronatec Federal, e as Etecs e Fatecs do Estado de São Paulo. A receita do Banco Mundial e do FMI para o rebaixamento da inflação, da dívida do Estado é a redução dos direitos trabalhistas, do corte de aposentadorias. A Grécia e a Espanha são exemplos recentes da intervenção do FMI.

A crise levará à reforma e ao aperfeiçoamento do Estado de bem-estar social, como aponta um artigo disponível no site da University of Pennsylvania, Wharton. O crescimento populacional, o envelhecimento da população, as novas conjunturas internacionais requerem um aperfeiçoamento dos mecanismos até então adotados, mas sem prejuízo aos direitos alcançados. O Brasil pode e deve ser um país melhor, semelhante aos países que compõem o topo do ranking de maiores IDHs do mundo, mas para isso precisa acabar com a corrupção, com o desvio de verbas públicas, com o coronelismo e clientelismo ainda presente nas regiões Norte e Nordeste, desenvolver uma profunda reforma política, tributária, federalista, civil, criminal e também cultural. Para tanto, são convidados todos os cidadãos, dos mais diferentes credos e etnias. Como nos países escandinavos e da Europa Ocidental, os cristãos brasileiros também têm de participar da mudança, da construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária. Precisamos ir em busca de mais mudanças.

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