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Mulheres Puritanas e sem Direitos

Por Johnny Bernardo

“A mulher como figura pertencente à sociedade, perpassa por um processo de “civilização” da própria história “masculina” do homem, ou seja, desde a Antiguidade até o final do século XVII, a mulher era considerada imperfeita por natureza, entretanto “puritana” em todos os sentidos. Um “ser” que deveria ser defendido, protegido dos “outros”, guardado no interior da casa, com atitude servil, incapaz de auto-sustentar, com voz, contudo, sem opinião. Na mudança dos cânones sociais de Elias remete a visão dos inegáveis efeitos perversos na cultura das discriminações de gênero, etnicidade e orientação sexual e a ideia nova”, é com tais palavras que Marizabel Kowalski inicia sua apresentação “Civilidade e Contemporaneidade: Visibilidades puritanas e a identidade feminina nos momentos históricos que marcam a trajetória da mulher na sociedade contemporânea“, por ocasião do XII Simpósio Internacional Processo Civilizador (Recife, 2009). Neste artigo vamos traçar, a partir de observações de Kowalski e de outras pesquisadoras, o perfil da mulher puritana.

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Há algumas semanas – portanto, não trata-se de um artigo recente – o pastor Renato Vargens publicou um artigo em que analisa o crescimento do número de mulheres com algum tipo de envolvimento com Teologia e Puritanismo. No artigo, Vargens cita quatro páginas do Facebook, a partir das quais fundamenta sua análise. Não é, digamos, uma base sólida para que se fundamente qualquer tipo de análise, mesmo um artigo sem pretensões acadêmicas. O que ocorre é que não temos pesquisas que comprovem tal crescimento. Por outro lado, temos autoras que tratam de forma científica a difícil situação das mulheres puritanas durante o século XIX, com recorte para à Era Vitoriana, na Inglaterra. Além das conclusões apresentadas por Kowalski durante o Simpósio Internacional Processo Civilizador, outras pesquisadoras, como Francilene Alves Lopes, em “A figura feminina no século XIX no contexto social da obra: Razão e Sensibilidade” (FAPAM, 2013) e Cristiane Maria Lopes, em “A mulher na Era Vitoriana: um estudo da Identidade Feminina na Criação de Thomas Hardy” (UFPR, 1986) traçam o perfil de servidão, submissão, de direitos negados das mulheres puritanas, no século XIX.

Submissão

Desde cedo as meninas eram submetidas a um processo de doutrinação com o objetivo de que estas seguissem os exemplos de suas mães, de submissão à figura masculina. É o que reconhece o autor do artigo “Como eram as mulheres puritanas?” (Blog Cristãos Contra o Mundo): “Os pais puritanos, obedecendo à instrução do Senhor, começavam a doutrinar os filhos desde os seus primeiros anos de vida”. Assim, sabemos que desde os primeiros dias de vida as meninas passavam por um amplo processo de doutrinamento, que abrangia a forma como deveriam seguir os exemplos de seus pais e, principalmente, a serem submissas e boas donas de casa. Como observa Kowalski, a mulher era “um ser que deveria ser protegida dos “outros”, guardada no interior da casa, com atitude servil, incapaz de se auto-sustentar, com voz, contudo, sem opinião.” O universo da mulher era restrito ao lar, ao cuidado dos filhos, de submissão às opiniões e vontades do marido. Não tinha, portanto, opinião, desejos. As mulheres eram doutrinadas. O termo doutrinação é constantemente empregado por religiosos e jornalistas quando se referem ao trabalho midiático de progressistas, mas e com relação a doutrinação puritana? Um exemplo?

Restringir o universo feminino ao lar, a dedicação aos filhos e ao marido, é impedir que esta tenha opinião e vontade de exercer uma profissão, de ser independente financeiramente. Chega a ser hilário, senão o fosse preocupante o desejo de algumas saudosistas do Puritanismo, o gosto por homens com barba e o uso de roupas típicas da Era Vitoriana. No artigo “Vinte coisas que mulheres puritanas gostam“, o item 13 descreve o gosto por homens com barba: “Não é unânime, assim como não é todos os demais pontos, mas é certo que muitas reformadas apreciam homens com barba, talvez porque confere uma aparência mais masculina, conforme o esteriótipo dos homens do passado, predominantemente, ostentavam suas barbas”. O item 6 também é interessante porque fala do gosto por roupas, acessórios e decorações em estilo Vintage e Retrô, e o item 14, sobre o gosto por chá de mulheres. Mais interessante é saber que estes “gostos” se remetem à Inglaterra do século XIX, período em que as mulheres não tinham direito ao trabalho, ao voto, e a exercerem sua cidadania. Suas vidas eram regidas pelos homens, por suas preferências e opiniões. Seriam estes exemplos a serem seguidos atualmente?

Notícia publicada em março de 1857 pelo The New York Herald sobre as 129 operárias mortas por protestarem

Sem direitos

Maria Raquel Fernandes Pereira, em seu “A mulher na sociedade vitoriana” (2010), fala do perfil da mulher puritana do século XIX. “Deveria ser, delicada, passiva, submissa e bela, assim deveriam ser as mulheres vitorianas. Almas tão puras não podem ser corrompidas com negócios ou ciência, e corpos tão frágeis não têm condições de trabalhar para o próprio sustento. O papel da mulher na sociedade vitoriana limita-se à vida doméstica, compromissos sociais como organização e participação em bailes, visitas à igreja ou à paróquia da cidade ou um chá durante a tarde com outra respeitável dama. Essas atividades resumem a vida das mulheres nessa época”. Era essa a triste realidade das meninas educadas na sociedade puritana e patriarcalista inglesa. Desde cedo eram doutrinadas a serem boas donas de casa, nada mais do que isso. Algumas trabalhavam, é verdade, mas a grande maioria dedicava-se apenas aos cuidados da família, do lar. Torna-se difícil acreditar que em pleno século XXI, em que os direitos da mulher estão em crescente aceitação social e pública, uma pequena minoria de mulheres formadas tenham saudosismo por um período em que a mulher não tinha direitos, não podia se manifestar.

A escritora Jane Austen (1775-1817) foi uma das poucas a ousar a apresentar o cotidiano da mulher em seu livro Razão e Sensibilidade (1811). Foi com base neste livro que Francilene Alves Lopes dedicou sua tese para a obtenção do grau de Licenciatura Plena. Sobre a figura da mulher diante da sociedade inglesa da época, Lopes pontua: “Em uma sociedade fundamentada no patriarcalismo, a mulher era excluída de qualquer participação social, não sendo considerada cidadã política, pois mesmo a mulher da elite com certo grau de instrução estava restrita ao espaço privado […] Os homens dominavam os espaços públicos bem como os privados e as mulheres deviam ser submissas e dedicar-se exclusivamente à manutenção do lar e à educação dos filhos”. O patriarcalismo, segundo Lopes, transformou a mulher em objeto de uso masculino e a identidade feminina construída pelo sistema em vigor na época foi um erro social. Apesar da reconhecida limitação da mulher neste período, Lopes lembra que muitas aceitavam passivamente tal situação. Por outro lado, “muitas mulheres não estavam interessadas em nada que fosse além de uma temática amena e divertida”. O mesmo acontece no Brasil, em pleno 2017.

A mulher era um “ser” que deveria ser defendido, protegido dos “outros”, guardado no interior da casa, com atitude servil, incapaz de auto-sustentar, com voz, contudo, sem opinião. (Marizabel Kowalski)

O Feminismo rompe com a sociedade patriarcalista

Mesmo reconhecendo que muitas mulheres da Era Vitoriana aceitavam passivamente sua situação – algumas, talvez, por medo de seus cônjuges -, entre os séculos XIX e XX começou o que Maggie Humm e Rebeca Walker chamam de “primeira onda do Feminismo”. Foi na Inglaterra que o Feminismo fincou raízes, especialmente pela atuação das suffragettes, que eram mulheres inglesas que lutavam pelo direito de votar ainda no século XIX e cuja causa tornou-se uma bandeira feminista no começo do século XX. Paralelamente, em Nova York, a morte de 129 operárias que deflagaram uma greve por melhoria salarial (ganhavam um terço do salário dos homens) foi o marco inicial para a criação do Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de março. No dia 6 de maio de 1912, também em Nova York, milhares de mulheres foram às ruas para reivindicar o sufrágio universal, ao direito de votarem e serem votadas, sendo conhecido como a Parada do Sufrágio Feminista. É assim que o movimento feminista inicia sua marcha, na luta por direitos há muito negados à mulher. Como lembra Kowalski, “da Antiguidade até o final do século XVII, a mulher era considerada imperfeita por natureza”. Era a vez do Feminismo.

Teologia e Feminilidade

Não há informações precisas ou seguras sobre o número de mulheres com algum tipo de envolvimento com teologia. A única informação de que dispomos advém de uma pesquisa feita pelo Instituto Cristão de Pesquisas, em 2010, que constatava a ausência de mulheres nos cursos teológicos. Em entrevista pulicada no livro Grandes Entrevistas (Oliveira, Jamierson, 2013), a doutora Rosalee Velloso Ewell, atribui ao pouco número de mulheres matriculadas em curso teológico, à predominância masculina. “O fato é que, no Brasil, o reconhecimento e a importância conferidos à educação teológica é algo muito recente. Além disso, a tendência nas nossas igrejas, principalmente nas tradições protestantes, tem sido encorajar os homens a estudarem teologia e não as mulheres”. Este é apenas um dos problemas, mas que no fundo tem como consequência a predominância masculina nos cursos teológicos e a proibição da participação de mulheres nos púlpitos. Parte da culpa recai sobre puritanos e conservadores. No artigo “Por que mulheres não podem pregar no púlpito?”, o Rev. Josafá Vasconcelos reconhece a existência do preceito contra à mulher.

Mas, independente da existência de poucos dados sobre a participação de mulheres em cursos teológicos e no exercício da pregação, a informação de que mulheres reformadas estão ocupando as redes sociais e a blogosfera com páginas como “Mulheres que amam teologia”, “Teologia e feminilidade”, “Teologia e mulheres”, é um bom sinal de que elas estão ocupando um espaço antes restrito aos homens, ao sexo masculino. Diferente do que supõe Renato Vargens, este fenômeno não traz em nada críticas ao marxismo cultural ou aos progressistas. É, na verdade, um progresso, dentro do campo progressista. A declaração de amor à teologia, por mulheres, rompe com a barreira de exclusivismo masculino. Estão dentro do campo progressista, e não contrário a ele. Portanto, mesmo não sendo um fenômeno com comprovação científica, por meio de números e fundamento teórico confiável, a existência de mulheres que têm algum tipo de envolvimento com teologia é um avanço, e não um retrocesso. O problema reside no saudosismo dos costumes antiguados e desrespeitosos do puritanismo do século XIX, da Era Vitoriana.

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