Há padrões de conversa entre cristãos que de tão repetitivos merecem ser analisados. Se algo acontece com muita frequência, certamente é porque as causas que geram o fenômeno estão atuando, e exercem uma influência decisiva e constante. Descrever tais conversas pode ser um exercício capaz de elucidar algo sobre estas causas e dar visibilidade a alguns problemas que podem estar obstruindo o conhecimento da realidade e o cumprimento da missão que Deus delegou à sua Igreja.
Vamos a um exemplo. Um pastor que conheço postou um comentário no Facebook falando da perseguição anticristã nos países islâmicos:
Em nenhum dos cerca de 50 países muçulmanos no mundo há liberdade de culto e de expressão de fato. Nem mesmo na Turquia, que é considerada a mais secular das nações islâmicas, essas liberdades são observadas. Em quase todos esses países as minorias religiosas são perseguidas, com destaque para os cristãos de todas as matizes, que têm sido sistematicamente perseguidos.
Abaixo, eis o primeiro comentário que surgiu:
Pastor (…), Eu particularmente, respeito todas as observações que são feitas por qualquer ser humano, sendo que mais ainda vindo de um pastor, e ainda mais de sua pessoa a quem tenho muita admiração. Porém NADA do que está acontecendo com a humanidade é novidade para quem lê a Bíblia, estes fatos já foram profetizados em vários trechos, sendo um particularmente em Mateus 24 pelo próprio Jesus Cristo. Eu considero até mesmo um ato de incredulidade, o cristão ler, sobre tais profecias, e depois ficar admirados com as notícias atuais. Estão esperando o que? Que seja mentira o que está escrito na Palavra de Deus, ou que Deus tenha se enganado?
Já ouvi inúmeras vezes essa conversinha mole pretensamente sábia. E me senti obrigado a fazer algumas considerações, afirmando que uma coisa é saber que as profecias vão se cumprir, e outra, tão importante quanto, mas que sempre é desprezada por muitos cristãos, é saber O QUÊ está acontecendo com a igreja hoje, COMO estas profecias estão se cumprindo, QUANDO estão, ONDE estão, QUEM são os autores dos atos que fazem as profecias serem cumpridas, e quais são as IMPLICAÇÕES de ordem prática para a igreja, que deve agir com prudência,visando ganhar almas, e ciente do que ocorre num mundo para o qual é chamada para ser sal e luz.
Prossegui observando que sempre surgem os gostosões espiritualóides assim que alguém tenta fazer algo relevante e que contribua para que a igreja saiba como se posicionar e atuar. É começar a trabalhar neste sentido, e aparecem os pretensos esquadrinhadores de Bíblia, destilando sua presunção, evocando obviedades (preciosas, sim) como as profecias, a inerrância, etc. Enfim, parafraseando Rick Nañez, os irracionalistas gostam de tentar provar que suas razões para permanecerem ignorantes são válidas.
Como se conhecer a Bíblia desobrigasse a pessoa a entender minimamente o contexto no qual vive. “Ato de incredulidade” é ler a Bíblia e achar que pode continuar desprezando os fatos que atingem seus irmãos na fé ao redor do mundo.
E veio a réplica:
Prezado Sr Edson Camargo, mude então o quadro dos acontecimentos.
Aí estava a cereja do bolo. Um fatalismo tosco. Não me admira que tenha vindo no formato da “sentença concisa e fatal”, o arranjo retórico instantâneo que dá a questão por encerrada. A estupidez nunca argumenta; cospe sentenças “fatais”. Respondi que, se eu, ele, ou qualquer outro cristão não pudéssemos mudar “o quadro dos acontecimentos” em nada, não receberíamos a convocação “ide e fazei discípulos”, nem qualquer outro dom da parte do Senhor para fazer a obra DEle aqui na terra. Perguntei à criatura se ela já tinha ouvido falar no poder da oração. E se já havia refletido sobre o que Deus pode fazer quando o povo entende sua situação espiritual e histórica e busca agir seguindo os princípios das Escrituras e a direção do Espírito Santo. Ou sobre a doutrina do ‘mandato cultural’.
Acrescentei que alardear o óbvio de que “tudo isto já está profetizado” não passava de uma desculpinha vulgar e farisaica para permanecer não só parado, fugindo de toda e qualquer responsabilidade, como para manter-se em confortável alienação. Conclui observando que este tipo de posicionamento, notoriamente negligente e presunçoso, já foi classificado como herético. Depois o irmãozinho disse que tinha sido mal compreendido, que concordava comigo e tal. Não sei, mas deixa para lá.
O outro extremo desse posicionamento também é epidêmico. É o do ativista notoriamente influenciado pelo pensamento de esquerda e pela teologia da Missão Integral. Ele pensa que vai mudar o mundo e contribuir com o fim das injustiças na Terra. (Falo nisso e já lembro da comparação feita por Michael Oakeshott entre o progressismo e a mentalidade de Nimrod e seus companheiros na construção da Torre de Babel, para mim, a primeira ONU.) Isso não passa de um analfabetismo existencial grosseiro que não leva em conta nossa condição de seres caídos. Sem levar em conta a ‘Queda’ no Éden, não é possível entender o ser humano, nem mesmo a razão da vinda, da morte e da ressurreição do “segundo Adão”, o Senhor Jesus Cristo. A extensão disso para um pensamento realmente cristão sobre questões antropológicas, sociais, culturais e políticas é simples: não se faz uma boa gemada com ovos podres. Há a “graça comum”? Sim. Há a cognoscibilidade da natureza absoluta da moralidade? Sim. Mas que ninguém pense que pode aperfeiçoar moralmente o ser humano para criar o tal “outro mundo possível”. Quem vai dar um jeito nesse mundo é Cristo. Não essa patota aí que produz infernos em série pelo menos desde a Revolução Francesa e vai entronizar o Anticristo, que, pelo que leio no capítulo 13 do Apocalipse, adora uma intervenção estatal na economia (e também na família, na educação, na cultura) igualzinho a estes esquerdinhas gospeis que acham um absurdo seus irmãos protestarem contra o gayzismo e o aborto.
E assim caminhanhos, entre tantos que decidem não querer saber de nada, e ainda assim pensam que podem dar lições, e outros tantos que, querendo aprender, se enredam nas armadilhas da hegemonia cultural da esquerda e vão contaminando os outros, fazendo a “criação de coelhos” da qual falava um dos arquitetos da usina de revolução cultural anticristã chamada Escola de Frankfurt, o sr. Willi Münzenberg. Já fui desse segundo grupo. Conheço bem a doença existencial e espiritual da qual padecem.
Aí estão duas formas de ser alienado na atual situação cultural e política. As duas têm versículos e slogans na ponta da língua. Em cada um desses grupos se vê, em muitos aspectos, uma espécie distinta de pecado em relação ao conhecimento: rejeitá-lo, negá-lo, e se desumanizar – pois o homem é racional por natureza – ou endeusá-lo a ponto de pensar que com ele podemos ser perfeitos como Deus. Olavo de Carvalho lembrou, em certa ocasião, as palavras que os definem, e que são parecidas: agnosticismo e gnosticismo.
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Escrevi um comentário sobre o papiro da suposta ‘esposa’ de Jesus, as bobagens que começaram a circular por aí e algumas questões de método relativas à pesquisa histórica. Está aqui.
(Imagem: Narciso, de Caravaggio, 1599.)