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Amarrar demônios é bíblico?

Tá amarrado, em nome de Jesus!

Esta frase tem grande peso doutrinário em muitas igrejas, principalmente as adeptas da teologia da prosperidade e confissão positiva. Também é muito utilizada pelos tão famosos e procurados ministérios de batalha espiritual e libertação. Inclusive, tal frase virou até jargão para situações difíceis do cotidiano dos crentes.

Trata-se de um ato místico, no qual o cristão supostamente exerce um poder sobrenatural para “amarrar” demônios e até mesmo a Satanás. Em muitos cultos nessas igrejas, os demônios são amarrados antes, durante e depois, para que o mover de Deus possa fluir sem interferência. Nos cultos específicos de libertação acontece um festival de amarrações, até mesmo entrevistas com demônios são feitas, nas quais é difícil de acreditar que alguém dê créditos ao “pai da mentira” (Jo 8:44). O nível místico é tão alto que alguns chegam até a amarrar supostos demônios do vício, da prostituição, da glutonaria, do egoísmo etc., afirmando que tais comportamentos são causados por demônios, tirando completamente a responsabilidade humana atribuída aos desejos pecaminosos da carne (Gl 5:19-21 ).

A frase “tá amarrado” é tão presente no meio eclesiástico que, se alguém ousar questionar tal “autoridade” é automaticamente considerado como blasfemador e herege.

Com todo o respeito àqueles que pensam assim, informo que podemos (e devemos) analisar se tal frase tem respaldo bíblico. Seguindo o exemplo dos bereianos de Atos 17:11, é o que eu pretendo fazer através desse artigo. Antes que me ataquem pedras, deixo claro que eu creio na realidade sobrenatural de anjos e demônios. Porém, o foco do meu artigo não é abordar este assunto, mas sim analisar biblicamente o ato de “amarrar demônios”.

Os defensores da amarração de demônios utilizam Mateus 12:29 e/ou Marcos 3:27 para defender tal prática. Vejamos as passagens:

Ou como pode alguém entrar na casa do valente e roubar-lhe os bens sem primeiro amarrá-lo? E, então, lhe saqueará a casa.” (Mt 12:29, ARA)

Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os bens, sem primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa”. (Mc 3:27, ARA)

Para compreender o que Jesus estava falando, precisamos verificar o contexto das passagens supracitadas. Neste caso, vou concentrar a análise em Mateus 12:29 para facilitar o entendimento.

Jesus tinha acabado de curar um endemoninhado cego e mudo (vs 22). Os fariseus blasfemaram, acusando Jesus de ter expulsado os demônios “pelo poder de Belzebu, maioral dos demônios” (vs 24). A resposta repreensiva de Cristo foi categórica e admirável: “Jesus, porém, conhecendo-lhes os pensamentos, disse: Todo reino dividido contra si mesmo ficará deserto, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não subsistirá. Se Satanás expele a Satanás, dividido está contra si mesmo; como, pois, subsistirá o seu reino?” (vs 25-26)

Logo depois no verso 29, Cristo faz uso de uma analogia, colocando o caso de um ladrão que invade uma casa e amarra o dono para poder roubar. Ele utiliza esta analogia para demonstrar que não fazia sentido expulsar demônios sendo um deles, da mesma forma que invadir tal casa para roubar os bens sem amordaçar (amarrar) o dono não teria sentido.

O mundo estava, de certa forma, dominado pelo maligno (1Jo 5.19), quando Jesus veio ao mundo, ele mostrou a sua superioridade sobre Satanás (Mt 4:1-10), estabelecendo o seu reino para libertar os oprimidos (Mt 12:28) e destruir as obras do Diabo (1Jo 3.8). Entrar na casa do “valente” e amarrá-lo para saquear seus bens é, metaforicamente, entrar no mundo, anular a atuação maligna e salvar as vidas dominadas por Satanás. Quem fez isso foi exclusivamente Jesus, sendo mais forte que o inimigo, definitivamente o venceu! Portanto, não há nenhuma margem exegética para afirmar a necessidade de “amarrar” espíritos malignos.

Como complemento de apoio à prática de amarrar demônios, os defensores deste conceito usam Mateus 16:19 e/ou Mateus 18:18 para afirmar que as próprias pessoas dão ou tiram o poder para os demônios agirem, ou seja, ligam e desligam nos céus as ações demoníacas, quando e como bem quiserem. Esta passagem também é muito utilizada pelos adeptos da confissão positiva, dos quais reivindicam de Deus exigindo as bençãos que eles verbalizam como “ligadas nos céus”. Esta refutação também serve para este caso. Porém, não abordarei este assunto a fundo, pois não é o foco desse artigo. Vejamos as passagens bíblicas:

Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus.” (Mt 16:19, ARA)

Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus” (Mt 18:18, ARA)

Analisando com atenção, notamos que na verdade não é nós que ligamos algo na terra para então depois ser ligado nos céus. O que acontece é exatamente o contrário! Exegeticamente, os termos “terá sido ligado” e “terá sido desligado” (grego = éstai dedeménon e éstai lelyménon) está no tempo futuro perfeito passivo perifrásico, o que indica uma ação ocorrida anteriormente, com reflexos no presente.[1] Ou seja, implica que primeiro foi ligado no céu, para só depois ser ligado na terra, a ação de Deus precede a do homem e não o contrário!

Este é o grande problema que vemos neste conceito “amarratório”, pois além de distorcer o verdadeiro significado do texto, torna-se uma afronta a soberania de Deus, colocando-o em condição de mero observador, totalmente passivo às atitudes humanas. Contrário a isto, vemos o exemplo bíblico de quanto Satanás pediu permissão diretamente à Deus para tocar na vida de Jó, mostrando assim que os espíritos malignos são limitados pelo controle absoluto de Deus (Jó 1.12, 2.6).

O que Cristo “ligou” e sancionou nos céus foi à autoridade dada aos discípulos, pra que eles pudessem, em Seu nome, abrir o reino dos céus para os crentes e fechar para os descrentes através do evangelho. O desenvolvimento desta verdade está claramente demonstrada em Atos 2:14-40, quando Pedro abriu a “porta do reino” através do evangelho, pregando e anunciando a vontade de Deus com a autoridade que o Mestre tinha outorgado. Pedro e os apóstolos foram os agentes humanos através de quem a entrada no reino de Deus seria negada ou permitida.

Sobre Mateus 18:18, o mesmo se aplica, porém no contexto específico de disciplina eclesiástica. Quando alguém é expulso da Igreja de forma justa, a liderança estará cumprindo o padrão que Deus já estabeleceu no céu (veja 1 Co 5.1-13, Tito 2.15-3.11, Rm 16.17-20, 1 Tm 5.19-22, 2 Ts 3.6-15, 2 Tm 2.22-26 ).

Sendo assim, concluo que estas passagens também não dão nenhuma margem exegética para afirmar que devemos “amarrar demônios”.

Para finalizar, o padrão bíblico para repreender e expulsar espíritos malignos é outro, bem diferente de amarrá-los e entrevistá-los. Wayne Grudem, em sua teologia sistemática, explica com clareza a maneira bíblica correta de proceder:

 Se como crentes achamos apropriado falar uma palavra de repreensão ao demônio, é importante que nos lembremos de que não precisamos temer os demônios. Embora Satanás e os demônios tenham muito menos poder que o Espírito Santo que opera dentro de nós, uma das táticas de Satanás é tentar causar medo em nós. Em vez de ceder a tal temor, os cristãos devem lembrar as verdades da Escritura, que nos dizem: ”Filhinhos, vocês são de Deus e os venceram, porque aquele que está em vocês é maior do que aquele que está no mundo” (lJo 4.4); e: “Pois Deus não nos deu um espírito de covardia, mas de poder, de amor e de equilíbrio” (2Tm 1.7). Paulo diz aos efésios que em sua batalha espiritual eles devem usar o “escudo da fé”, para que possam “apagar todas as setas inflamadas do Maligno” (Ef 6.16). Isso é muito importante, visto que o oposto do temor é a fé em Deus. Ele também lhes diz para serem intrépidos em sua luta espiritual, de forma que, tendo tomado toda a armadura de Deus, pudessem “resistir no dia mau e permanecer inabaláveis, depois deterem feito tudo” (Ef 6.13). Paulo diz que os cristãos, em seu conflito contra as forças espirituais hostis, não devem bater em retirada ou se encolher de medo, mas permanecer intrepidamente no seu lugar, sabendo que suas armas e sua armadura “não são humanas; ao contrário, são poderosas em Deus para destruir fortalezas” (2Co 10.4; cf. lJo 5.18).

Na realidade, essa autoridade de repreender demônios pode resultar em uma breve ordem ao espírito maligno para ir embora quando suspeitamos da presença de influência demoníaca em nossa vida pessoal ou na vida dos que nos cercam. Devemos resistir ao Diabo (Tg 4.7), e ele fugirá de nós. Há ocasiões em que uma breve ordem no nome de Jesus será suficiente. Outras vezes será de grande utilidade citar as Escrituras no processo de ordenar ao espírito para que abandone aquela situação. Paulo fala da “espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6.17) . E Jesus, quando foi tentado por Satanás no deserto, repetidamente citou as Escrituras em resposta às tentações do Diabo (Mt 4.1-11). Entre os textos apropriados da Escritura podem ser incluídas afirmações gerais do triunfo de Jesus sobre Satanás (Mt 12.28,29; Lc 10.17-19; 2Co 10.3,4; Cl 2.15; Hb 2.14; Tg 4.7; lPe 5.8,9; lJo 3.8; 4.4; 5.18), mas também versículos relacionados diretamente à tentação particular ou dificuldade iminente. É importante lembrar que o poder de expulsar demônios não vem da nossa força ou do poder de nossa própria voz, mas do Espírito Santo (Mt 12.28; Lc 11.20).[2]

Soli Deo Gloria!

Notas:
1 – Carson, D.A. – A Exegese e Suas Falácias, os perigos da interpretação Bíblica – 2001 Ed. Vida Nova, pág. 73
2 – Wayne Grudem – Teologia Sistemática. Edição Revisada – 2009 Ed. Vida Nova.

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