UM JOÃO QUALQUER
Permita-me conjecturar.
A foto, praticamente arrancada do peito do fotógrafo Victor Prat, é de um homem, durante a ação de despejo da ocupação Nelson Mandela, em Osasco. Li que duas mil famílias viviam ali. Cerca de doze mil pessoas. O homem, não sei o nome, talvez João. Mais um. É bem possível. Talvez João Santos ou Silva. É provável que um desses nomes ele tenha. João dobra os joelhos sobre uma plataforma de tapumes, que protege seus jeans do chão barrento. Ao seu redor, cães latem ferozes. Mulheres e crianças choram. Helicópteros sobrevoam baixinho. Bombas explodem e, como se não bastasse, barracos queimam com o fogo.João olha atônito ao redor.
João é crente. Tem uma bíblia nas mãos. Dois dias antes da fatídica terça-feira, 9 de junho, ele estava no culto de sua comunidade evangélica. Ergueu as mãos aos céus. Sorriu esperançado. Bateu palmas em canções que lhe falavam de um novo tempo. De amor. João, é possível, se converteu após uma vida turbulenta. Deixou um passado para trás, talvez, cheio de tropeços. Novo homem, com uma bíblia nas mãos, sentia desde então que tudo era possível ao que crê. Sentia-se pertencendo a algo maior, um reino. O reino de Deus. Mas naquela terça à tarde, ali, tão sozinho, João já não se sentia mais amparado. Nem por Deus, muito menos pelos homens.Dobrou seu joelho, lembrando-se de alguma passagem bíblica. Talvez a narrativa de Elias, quando pediu aos céus fogo. E Deus mandou fogo, num primeiro momento. Depois água, aplacando sua fúria. Pediu um só anjo. Pediu forças para que ele também não fosse consumido ali, prostrado. João não sabia o que fazer. Tudo que ele tinha era quase nada. Agora o nada, o vazio, é apenas o que ele tem.
Obrigado, Marcos Custódio, por partilhar a foto e o sentimento.
Texto de Marcelo Santos